Rio Grande do Norte, sexta-feira, 26 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 24 de agosto de 2013

Mulheres de Miyazaki

postado por Loa Antunes

Esta publicação iniciará uma série de críticas cinematográficas sobre os filmes de animação do diretor japonês Hayao Miyazaki. Porém, muito mais do que catalogar o que enxergo como qualidades artísticas de suas produções, pretendo analisar como o conjunto de longas do diretor trabalha representações sobre a mulher e o feminino. Miyazaki tradicionalmente desenha, escreve e anima protagonistas crianças, adultas e idosas que de muitas maneiras desviam-se dos padrões de um dos nossos maiores estúdios de animação ocidental, o Disney; elas guiam-se, na maioria de suas obras, por comportamentos que não são os retratados na animação tradicional como sendo de mulheres ou de princesas.

Hayao Miyazaki (1941)

Diretor/Animador Hayao Miyazaki (1941)

Hayao Miyazaki nasceu em 1941 na cidade de Tóquio, iniciou sua carreira de animador em 1963¹ pelo estúdio Toei. Dentre as inspirações do cineasta, os aviões tiveram grande importância. Seu pai foi diretor na Miyazaki Airplane que fabricava A6M Zero durante a Segunda Guerra Mundial, em decorrência disso a guerra e a aviação (paixão do cineasta) se tornaram temáticas marcantes em suas produções audiovisuais. Mas estas influências são encontradas também em seus mangás, como Nausicaä do Vale do Vento (1982) e The Age of the Flying Boat (1989).

Outras temáticas se tornaram marcas do diretor, como: o debate ecológico, a crítica ao desenvolvimento industrial/capitalista, o conflito entre a sociedade tradicional e a modernidade, a passagem da infância para a vida adulta e suas protagonistas/princesas, estas atravessadas por comportamentos desviantes ao esperado por aqueles que demais assistam (ou eduquem suas filhas a assistir) as clássicas Princesas Disney. Ainda, quem demasiado esteja acostumado à visão maniqueísta cristã do mundo e das relações sociais notará que, desde seu primeiro filme, Miyazaki procura desfazer o binarismo bem/mal, de forma que a relação entre seus antagonistas e protagonistas são incomuns para nós ocidentais, sobretudo colonizados pelos blockbusters holywoodianos. Mesmo que o diretor anime longas-metragens complexos, extensos para o gênero e muitas vezes silenciosos, o sucesso que seus filmes fazem no Japão entre crianças e adultos tornaram muitas de suas obras as mais assistidas nos cinemas nipônicos em seus lançamentos.

Com essa série de críticas/artigos minha intenção não é apenas popularizar o diretor ou o cinema de animação, cinema que em nossas sociedades ocidentais é encarado como feito para crianças e por isso delegado a um gênero menor, sendo representado como análogo a literatura infanto-juvenil (mentira/fabulação/passatempo/fantástico), contrário de uma pretensa literatura das verdades e dos fatos, jornalismo, documentário, biografia, ciência (verdade/retrato do real/modo adulto de encarar o mundo/racional); desejo discutir os gêneros (masculinos, femininos, outros) como construções sociais, fabricados nas relações, nas produções culturais humanas e na linguagem, e que por isso mesmo podem ser, a qualquer momento e por qualquer pessoa, contrariados e subvertidos, como de fato o são, todo dia, toda hora. Buscarei colocar em xeque ideias que essencializam o feminino/masculino ou que destina-os biologicamente ao sexo pênis/vagina, produzindo discursos patologizantes dos desvios e interditando dissidências.

Chihiro e Haku. A Viagem de Chihiro (2001)

Chihiro e Haku. A Viagem de Chihiro (2001)

Por isso me pareceu pertinente comparar os animes de Miyazaki ao conjunto do que ficou conhecido como Princesas Disney, pois no espaço de tempo que separa Branca de Neve e os Sete Anões (1937) e Valente (2012) as lutas feministas e as críticas ao machismo ampliaram a participação das mulheres na sociedade e abriram possibilidades de lutas políticas e criação de subjetividades outras daquelas esperadas pelo tradicionalismo cristão. Já em dois momentos estudei o fenômeno da influência dessas Princesas Disney nas relações de gênero e nos relacionamentos heterossexuais, entrevistei junto com outros pesquisadores cinquenta estudantes de diversos setores da UFRN e publiquei em companhia de outra pesquisadora um artigo sobre A Pequena Sereia (Disney, 1989) e Porco Rosso (Ghibli, 1992), que analisava categorias de gênero nesses dois longas, apresentando no Seminário Internacional Desfazendo Gênero (Núcleo Tirésias, UFRN, 2013).

Essas transformações sociais e lutas por reconhecimento (movimentos feministas, negros, étnicos, classes, LGBTs) efetivamente fizeram mudar a maneira como as religiões e as ciências encaram as relações de gênero e sexualidade. Produziram outras possibilidades de viver socialmente, que anunciam exequíveis e ainda mais impactantes mudanças. Sobretudo, possibilitaram que os indivíduos falassem por si, que as ditas minorias se proclamassem como agentes políticos transformadores, donos de seus próprios corpos, de suas sexualidades, de suas maneiras de agir, viver, sentir, ser.

Fio reconstrói o avião de Marco. Porco Rosso (1992).

Fio Piccolo reconstrói o avião de Marco. Porco Rosso (1992).

Daí me parece importante conhecer que produções artísticas em diferentes sociedades retratam comportamentos e subjetividades outras que de alguma forma são dissonantes daquelas fabricadas pelas clássicas Princesas Disney, que até hoje resguardam seu papel na nossa cultura, sendo modelos de comportamento para crianças, instituindo no Brasil uma “Escola de Princesas”², ou produzindo expectativas de como as mulheres devem se comportar. Nossas crianças são bombardeadas por educações de gênero e policiamento de suas condutas, a fim de corrigir qualquer desvio à norma e padronizar os corpos e as mentes para a vida adulta: na loja de brinquedos a divisão “para meninos” e “para meninas”, no site de jogos igualmente, nossos objetos e cores são divididas por gênero; pais, mães e professores selecionam filmes da Barbie e Princesas Disney para suas filhas e alunas, heróis, guerrilheiros, combatentes para seus filhos e alunos. Os brinquedos apresentados como sendo de mulheres relacionam-se com o espaço doméstico e privado do lar (“brincar de casinha”, cuidar de bonecas, vestir modelos com vestidinhos em site de jogos, etc.); os que são apresentados como sendo jogos e “brinquedos de menino” estão para a competição com o outro, para o combate, para o conflito, para o espaço público e da política, para a vida nas ruas das cidades: carros, aviões, construção, robôs, lutadores, esportes interpessoais.

É talvez precisamente nos espaços que os filmes de Hayao Miyazaki são subversivos. Suas mulheres vão para as guerras, não têm comportamentos meigos, delicados, tampouco o sentido último de suas vidas é de se casar em magníficos castelos de belíssimos vestidos. Suas mulheres (exceto em Lupin III: O Castelo de Cagliostro, 1979, primeiro filme do diretor, está perdoado) não são princesas como a maioria das da Disney, elas ocupam os espaços públicos e da política, lutam por seus desejos que não se resumem ao encontro de um príncipe (jornada que motiva muitas mulheres adultas em nossa sociedade), mas que são desejos de outras ordens, sobretudo de ordens sociais. A Princesa Nausicaä substitui seu pai no reinado do Vale do Vento, guerreira destemida, cientista, adorada e respeitada por seu povo, exímia no combate. A princesa Mononoke defende seu reino florestal contra o avanço da modernidade que fere e destrói fauna e flora, monta em lobas e batalha. Fio constrói aviões, Gina é dona de seu Hotel, respeitada pelos piratas do céu, senhora de seus domínios. Ponyo foge do controle de seu protetor para a vida pública e conquista dos seus desejos. Os exemplos são muitos. Há um hiato entre as clássicas princesas da Disney e as mulheres de Hayao Miyazaki.

Não quero prescrever comportamentos, ditar novas normas, interditar novas dissidências ao longo deste e dos outros artigos (um por filme do diretor) que virão, dizer “siga este e não aquele exemplo”. Minha intenção é mostrar um pouco da pluralidade de possibilidades de ser, agir, sentir no mundo e em nós mesmos. A pluralidade de culturas e de produções culturais precisa ser acessada, não podemos ser alienados de tanta arte, nem colonizados pelos padrões de princesas sem possibilidade de negá-las, ou policiadas nossas condutas sem resistências. Não quero indicar a maneira correta de agir, mas dizer e mostrar que é possível agir de diversas maneiras, muitas delas que contrariam o poder e a ideologia conservadora, que nos tira da clausura doméstica, quando clausura, e então tomamos os espaços públicos, da atuação, da afirmação, da política. Nos tornamos agentes ativos de nós mesmos e do mundo, como Ponyo e Nausicaä, como Chihiro e Arriety.

Espero que os filmes deste conjunto de críticas/análises das mulheres de Miyazaki sejam oportunidades de conhecer novos cinemas, de expandir horizontes. São animações tecnicamente muito bem feitas, delicadas, apuradas, belas. Que um(a) leitor(a) amante do cinema de animação e dos animes e mangás, ou das dissidências políticas, dos feminismos, das lutas, aprecie as obras. E que desconhecidos conheçam-nas, Hayao Miyazaki e suas mulheres, que têm muito a dizer, mostrar, e como é próprio da animação e do Cinema: encantar.

Princesa Mononoke (1997)

Princesa Mononoke (1997)

¹, IMBD: http://www.imdb.com/name/nm0594503/bio

², Escola de Princesas: http://escoladeprincesas.net/
Matéria sobre a escola: http://globotv.globo.com/tv-integracao-triangulo-mineiro/mgtv-1-tv-integracao/v/empresaria-cria-escola-de-princesas-em-uberlandia-mg/2325599/

Loa Antunes

Doutorando em Ciências Sociais (Ciência Política) — UFRN Policial Militar — PM-RN. Cientista social.

One Response

  1. Thiago Leite disse:

    Muito bom! Aguardo ansiosamente pela continuação.

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