Rio Grande do Norte, sexta-feira, 26 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 27 de janeiro de 2015

Mané Garrincha e a dribleomagia

postado por Rafael Morais
Foto: Acervo “Última Hora”

Foto: Acervo “Última Hora”

Confira a primeira crônica da série chamada “Craques que eu não vi jogar”.

Meu pai sempre gostou de futebol. Aliás, esse gosto eu herdei dele. Dias atrás perguntei se ele já havia visto Garrincha jogar alguma vez. “Assisti”, disse ele. Foi em 1969, quando ele já não estava na sua melhor fase. O jogo foi no estádio Juvenal Lamartine. O Castelão ainda não havia sido inaugurado pelo então governador Cortez Pereira. O JL estava cheio, era o Flamengo que enfrentava o ABC em partida amistosa – o placar terminou 2 a 1 para os cariocas e o Mané fez um dos gols. Garrincha jogou alguns minutos e saiu, pois seus joelhos não aguentavam mais a pressão de ser sempre a estrela do espetáculo.

Ele nunca havia assistido nenhum jogo de Garrincha. Em Santana do Seridó, onde nasceu, só tinham duas TV’s. Uma no sítio, na bodega de Agripino, e outra no Coreto da cidade. Ele escutava jogos pelo rádio e acreditem, torcia para o Náutico, pois o aparelho só conseguia sintonizar uma emissora de Recife. Meu pai foi ao jogo no Juvenal para ver o “Anjo das Pernas Tortas”, a “Alegria do Povo”, mas nunca tinha visto sequer um drible de Garrincha.

Eu já nasci num mundo sem Garrincha. Só ouvia falar desse ponta-direita – posição que nem existe mais – que quando entrava em campo só pensava em entortar e desmoralizar o maior número possível de adversários. Que monstro foi esse que driblava uma, duas, três vezes e parava para voltar e driblar o mesmo zagueiro outra vez? Infelizmente não tive o privilégio de vê-lo em campo. Esse craque eu não vi jogar.

Garrincha na verdade era Manoel Francisco dos Santos. Tinha pele escura, herdada dos avôs, índios pernambucanos que migraram para Alagoas, e de seu pai que fixou moradia em Pau Grande, distrito de Magé, interior do Rio. O apelido que se tornou famoso foi dado pela irmã mais velha, fazendo referência ao pássaro de mesmo nome, comum na região.

Pau Grande tinha pouco mais que 2 mil habitantes e era terra perdida entre serras antes do mundo conhecer seu filho mais talentoso. Todas as casas pertenciam a fábrica de tecidos América Fabril, onde Garrincha era estrela do time mantido pela fábrica para disputas de torneios amadores.

O campo do Sport Club Pau Grande não era cercado. Todos podiam entrar e assistir as partidas sem pagar ingressos. Os jogadores eram amadores e os campeonatos também. E daí? Garrincha estava ali, passando por todos e brincando de driblar. Queria eu ser um operário da fábrica para poder ver o Mané fazer misérias ali.

Vestir a camisa do time da fábrica, do Botafogo ou da Seleção não era mais que obrigação. O que ele queria era jogar pelada, disse Ney Castro, autor da biografia do jogador. O que ele queria mesmo era passar por todos os marcadores que aparecessem na sua frente. Sofria de uma doença boa, a dribleomagia.

A pelada que Garrincha tanto gostava era em Pau Grande mesmo. Desde jovem sempre fora o melhor em tudo do time de amigos chamado Vai Que é Mole. “O normal era que jogassem Garrincha e mais dois contra sete ou oito, para a partida ficar equilibrada”, descreveu Ney no livro. Dizem até que Garrincha virou especialista em drible porque precisava fintar os milhões de buracos do campo de pelada.

O auge da carreira não demorou. Em 1953 Garrincha chegou ao Botafogo. E aqui abro um parêntese para agradecer a Iraty, ex-zagueiro do próprio Fogão, que o viu jogar em Pau Grande e não pestanejou em indicá-lo ao clube, e também ao dirigente da época, Eurico Salgado, que foi anonimamente a Pau Grande para ver Garrincha jogar e o trouxe de mala e cuia para General Severiano, onde permaneceu durante doze anos seguidos – de 1953 a 1965.

Quando chegou ao Botafogo, duvidaram que aquele garoto das pernas tortas – ambas eram flexionadas para o seu lado esquerdo – pudesse ser um jogador de futebol. Mas Araty e Eurico viram – que inveja deles – e juravam que aquele rapaz tinha mesmo qualidades extraordinárias.

Eles tinham razão! Garrincha, mais tarde nomeado pela mídia de Mané, foi um dos principais jogadores das conquistas das Copas do Mundo de 1958 e 1962. Foram as duas primeiras conquistas brasileiras. Pensem bem, um Garrincha em dias atuais nos faria até esquecer os sete gols da Alemanha na Copa de 2014.

Só que suas pernas tortas não eram unanimidades. Os adversários ficavam pavorosos. O jornalista Ary Barroso, que era flamenguista assumido, dizia que Garrincha era “jogador de uma jogada só”. Garrincha ia, voltava, driblava, parava, arrancava, driblava de novo, cruzava, chutava. Aquela única jogada fez do craque da fábrica o Bola de Ouro da Copa de 62 e, até hoje, o nosso maior número 7.

Mané era dono do pedaço. Fecho os olhos e imagino o campo com um tapete vermelho na ponta direita. Um corredor só dele, exclusivo para as estripulias de Garrincha. Os zagueiros eram apenas coadjuvantes no enredo desse passarinho. Aliás, digo mais. Todos os zagueiros do mundo deveriam uma vez na vida serem driblados por Garrincha. E deveriam ter orgulho disso. Seria como um prêmio de honra.

Foram bons anos, o Botafogo girava em torno do Mané. João Saldanha, jornalista e ex-treinador de Garrincha, mandava que todos os jogadores corressem para a área quando ele pegava a bola na ponta em direção a linha de fundo. Eu não vi, mas penso que era mais ou menos assim: ele não corria atrás da bola, a bola seguia seus passos e dribles com obediência. Ahhh, bastava ter visto 90 minutos de Mané.

Era incrível! Numa entrevista ao programa Vox Populi, da TV Cultura, Garrincha disse que “ia pegando as bolas, passando por eles e fazendo os gols”. Nelson Rodrigues escreveu que a desintegração das defesas começavam exatamente no primeiro momento em que Garrincha tocava a bola.

Seria Garrincha o Charlie Chaplin dos campos? Ele não era um poeta, mas nos gramados ele era um artista com a bola dominada. Tinha uma coreografia a lá Carlitos.

Mas a vida também é escrita por linhas tortas. O talento depositado em excesso nas pernas curvadas de Garrincha não foi proporcional ao que Deus lhe deu pra vida pessoal. A Garrincha que canta bonito, em pares, no alto das serras, não se adapta ao habitat fechado, não suporta a vida no cativeiro. O Garrincha, ídolo do Brasil, também não. Ele preferiu se manter amador, alimentando seus vícios com o cigarro, a bebida e a boêmia. Uma vez perguntado por que ele não ficou rico como o Pelé, Garrincha disse: “…eu só soube driblar com a bola nos pés”.

Após o título da Copa de 62 os joelhos do Mané não eram mais os mesmos. A atrofia que provocava a curvatura famosa das pernas também causava artrose e muitas dores. O desempenho caiu e seu vício alcoólico, que sempre existiu, se acentuou. Quando saboreei as frases duras de Ney Castro sobre os problemas do craque que eu queria ver jogar senti um pouco de raiva e decepção. Fora de campo ele era teimoso, errado, torto como suas pernas.

Só que Garrincha nunca deixou de ser Garrincha. Um anônimo se atreveu a dizer que a poesia do futebol estava nas pernas do Garrincha. O que o homem Manoel fez fora de campo não apagou as façanhas que o jogador proporcionou dentro dele.

A revista Veja de 8 de março de 1972 definiu quem foi Garrincha. “Era um louco, deliciosamente irresponsável. Quando perdeu a forma passou a ser apenas irresponsável”. Ele era louco pela bola.

O último gol de Garrincha como profissional aconteceu no empate do Olaria em 2 a 2 contra o Comercial, dia 23 de março de 1972, no Palma Travassos, em Ribeirão Preto (SP). Depois disso, como num drible, o zagueiro o derrubou com um empurrão e a bola morreu mansa aos poucos na linha de fundo.

Em 1983 ele perdeu a luta contra a cirrose hepática. Mesmo sem nunca ter visto ou ouvido algum jogo do Mané, enchi meus olhos de lágrimas ao vê-lo inofensivo dentro de um caixão. Sem zagueiros, sem o gingado, sem o brilho que o fizera ser a alegria do povo.

Aqui na terra ficou a nostalgia. Eu abriria mão até das cores da minha TV para estar ali (anos 60) no Maracanã, no meio daquele povo eufórico, ao lado daquele senhor careca de óculos com armações enormes que acenou pro céu ao comemorar o gol do Mané contra o Flamengo numa final do Campeonato Carioca. Ele sabia que aquilo era obra de Deus.

Mas Garrincha deixou sua história. Para eternidade e para o futebol ficou o mito, o craque que sentia prazer em driblar. Para o poeta Carlos Drummond de Andrade, a sensação ruim de que não há outro Garrincha disponível. E para os nossos ouvidos, as frases gravadas do maior momento do futebol, o grito de gol: “Apontou, repicou, gooool no tiro do Mané”.

Rafael Morais

Comunicador Social pela UFRN. Experiência em assessoria de imprensa esportiva e atuação em televisão. Áreas de interesse: literatura e esportes em geral, com ênfase no futebol como a "teatrialização das relações humanas".

Comments are closed.

Esportes

Wallyson: O menino de Seu Escadinha

Esportes

O Rei dos Reis