Rio Grande do Norte, quinta-feira, 25 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 21 de janeiro de 2016

Ataque aos sociólogos não passará!

postado por Carta Potiguar

Circula, nas redes sociais, um vídeo em que um policial militar aposentado clama às autoridades e aos cidadãos que se levantem contra a chamada “ideologia de gênero” e seus supostos efeitos desvirtuadores do ideal da família e da educação das crianças. O autor do vídeo atribui a sociólogos à criação desse nefasto fantasma que assombra as famílias e os bons costumes nacionais. Em suas palavras, “a uma cambada de desocupados se autointitulando sociólogos, de vários países, que se reuniram em Pequim, capital da China, e criaram a famigerada ideologia de gênero”.

Além de proferir tolices e barbaridades sobre a construção social dos gêneros e da sexualidade, uma ideia muito bem fundamentada nas mais variadas áreas de pesquisas das ciências humanas, como a sociologia, a antropologia, a história e a filosofia, o policial militar agride professores chamando-os de “vagabundos” e afirmando que os docentes estão ensinando as crianças a “como beijar na boca, como levar o seu filho para os banheiros para que ele possa observar o pinto ou o pipiuzinho de sua coleguinha dentro do banheiro, apalpa-los pra sentir, assistir filmes eróticos dos seus pais…” e outras asneiras. Não satisfeito em sua alucinação verborrágica, que não apresenta prova alguma acerca do que afirma, o autor do vídeo diz que quem discute gênero e sexualidade na escola não possui “referencial moral” compatível com a tradição familiar e religiosa do Brasil, são “fantoches, bandidos, vagabundos, travestidos de professores, disseminando o mal, tudo de ruim para o nosso povo, principalmente para as nossas crianças”.

Se o vídeo se esgotasse tão somente no discurso do policial aposentado, ele seria apenas mais uma amostra da histeria ignorante e conservadora que o país atravessa na forma de delírios coletivos que ganharam o nome de “ideologia de gênero”, “ditadura gay”, “revolução bolivariana” e outras estultices. De todo modo, a liberdade de expressão é, também, a liberdade de se expressar sem propriedade, o direito de dizer tolices – o que, alias, o autor do vídeo faz com louvor.  Mesmo repleto de equívocos, distorções e agressões gratuitas e preconceituosas, o vídeo representa o posicionamento, tolo, desinformado, de um cidadão que faz uso de seus direitos numa democracia, ainda que seja para emitir juízos e ideias sem fundamentos, exceto aqueles, emocionais, que sustentam o seu próprio delírio e falta de saber.

Mas o que torna o vídeo ainda mais lamentável é que o dito cujo é mestre em Ciências Sociais pela UFRN e se arvora à condição de “professor”. Contudo, a julgar pelo conteúdo do vídeo, o autor não sabe nem o que é gênero e, muito menos, ideologia. Triste, mas isso nos diz algo de relevante, que não podemos desconsiderar quando pensamos em nossas pós-graduações e seus critérios de avaliação e diplomação.

ameaçaNos comentários ao vídeo, postado na página do facebook do autor, encontramos o que a ignorância pode produzir: ódio, preconceitos e mais ignorância. Por exemplo, o comentário de um dos perfis que seguem o autor diz: “acredito que devemos respeitar o homossexual como se deve respeitar um doente!”. Isso, sim, é ideologia, ideologia da patologização dos comportamentos e das formas de prazeres e desejos humanos que são estigmatizados por uma ordem que consagra a heterossexualidade como a única forma “normal” e “natural” de viver e experimentar a sexualidade humana.

Como é de se esperar, o obscurantismo caminha junto ao desejo da violência, o desejo fascista que anseia eliminar física e simbolicamente a diferença, o outro. Em outro comentário, lemos o seguinte: “A NOVA ORDEM É LOCALIZAR E EXECULTAR (sic) ESSES SOCIÓLOGOS FDPS”.

No Estado Democrático de Direito, a crítica e a divergência entre visões de mundo é um bem de civilização. O debate de ideias e posições é sempre bem-vindo e necessário, uma vez que possibilita ativar a reflexividade pública sobre temas de interesse comum, e que pode levar a um aprendizado mútuo que nos faz avançar e crescer como sociedade e indivíduos. O vídeo em menção passa completamente ao largo de tal princípio. Em vez de ideias, dados sobre o que pretende “debater”, “denunciar”, sobra pavonice e falsidades.

No entanto, ataques, acusações desequilibradas, intimidações e até ameaças à integridade física e moral do interlocutor divergente não é e nem pode ser aceitável para os poderes legais constituintes. Pois atenta mortalmente contra o Estado de Direito e contra a integridade física e moral de comunidades e indivíduos, um valor inestimável que assegura um mínimo de pacificação e civilidade. Os conflitos devem ser equacionados no âmbito discursivo e racional do debate público ou da justiça, quando se julgar que se infringiu os limites da lei. O inverso disso é a prática fascista, de eliminação, de subjugação à revelia das leis e da dignidade e liberdade da pessoa humana.

Negar as normas legais de convivência cívica e enxergar na exterminação dos divergentes a condição de libertação do mundo de um suposto mal que determinadas pessoas (homossexuais, militantes, comunistas, sociólogos etc.) portariam, enquanto um plano malévolo de dominação, é um delírio, uma alucinação ideológica, mas que pode produzir desastres e violências bastante concretas e reais. O apego colérico e irrefletido às suas próprias imagens do mundo e crenças é o combustível que incendeia a barbárie e os diversos fundamentalismos, pois, no desejo de destruição dos “Outros”, habita também a obscura pulsão de autodestruição do próprio “Eu” civilizado. Por mais esdrúxulo e rasteiro que seja o conteúdo do vídeo, não podemos nos omitir.

Nós, da Carta Potiguar, repudiamos os discursos de ódio e ignorância que pululam no país. É preciso agir e tomar medidas sérias a respeito; medidas pedagógicas, políticas, mas também jurídicas, quando necessárias. Intelectuais públicos, professores, pesquisadores, pais, militantes, movimentos sociais, estudantes, todos temos um papel político e civilizatório relevante no combate ao surto conservador e retrógrado que ascende no Brasil. E, se não o fizermos, podemos colher duros retrocessos nas liberdades individuais e direitos sociais, arduamente conquistados e ainda incompletos e parciais em sua real efetivação na sociedade brasileira. A Carta Potiguar, como um projeto que nasce e tem entre seus editores e colunistas, sociólogos, antropólogos, cientistas sociais, demanda medidas cabíveis contra as ameaças realizadas e manifesta seu repúdio ao conteúdo do vídeo e às ameaças. Nem a ignorância obscurantista nem ameaças de violência devem ser toleradas. Ameaças e ataques não passarão! E os sociólogos continuarão a incomodar e a desmontar toda forma de ideologia de dominação e sujeição dos seres humanos, pois, como diria um importante sociólogo, “a sociologia é um esporte de combate”.

Carta Potiguar

Conselho Editorial

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