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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 21 de julho de 2016

A Escola sem Partido: patologia social e violação da liberdade individual

postado por Carlos Freitas

Costuma ser atribuída ao físico alemão Albert Eistein a autoria de uma frase sobre a ausência de limites para a estupidez humana. Sem a intenção de discutir a veracidade ou não da autoria, gostaria de dizer que a frase em si sintetiza bem a estupidez do Projeto de lei 193, de 2016, conhecido como Programa “Escola Sem Partido”. De autoria do senador Magno Malta (PR-ES), o PL prevê a punição legal de práticas de “doutrinação ideológica, política e moral” em ambiente escolar.

O Projeto Escola Sem Partido surgiu da tese paranoica e conspiratória sobre a disseminação massificada da ideologia “esquerdista” nas escolas e universidades do país. Para os idealizadores do projeto, a educação brasileira estaria capturada pelo “marxismo cultural” e por defensores da “ideologia de gênero”, que estariam subvertendo os valores “sagrados” da família brasileira, incutindo na juventude ideias, valores e crenças que contrariam a “liberdade de consciência e de crença” dos educandos e de seus familiares. Paradoxal que na aparente reivindicação de “liberdade” do PL se oculte um desejo de retorno da tirania da família e o consequente sequestro da liberdade individual.

O projeto se apresenta como uma demanda de liberdade, mas na verdade é o oposto disso. Pois aspira ampliar o poder da instituição família para além da esfera doméstica e sobre outras instituições, sobre o corpo e a agência dos jovens, limitando a liberdade do agir autônomo, seja da escola, seja dos próprios jovens estudantes.

A liberdade de cátedra como precondição da liberdade individual

O entendimento de que a educação deveria ser universal e plural não é uma narrativa exclusiva dos pensadores de escolasempartidoesquerda. Também faz parte da gramática de valores e crenças advogadas pelo liberalismo. John Stuart Mill, um filosofo liberal, motivado por razões diversas de qualquer apelo de justiça igualitária de esquerda, se apoiava em outra questão motivadora, precisamente, em como superar os obstáculos “internos” para o pleno exercício da liberdade. A preocupação de Mill era a respeito das precondições culturais e sociais necessárias para a liberdade de autorrealização individual. Porém, a questão da liberdade subjetiva também atraiu a atenção de pensadores românticos, os quais enxergavam na educação (estética) uma força libertadora.

Para muitos liberais, iluministas e românticos, a educação secular e universal não era somente um dispositivo institucional de transmissão da cultura, mas um meio de desvelamento/realização da liberdade humana plena, seja entendida como autolegislação ou como autorrealização. Com efeito, a compreensão da educação como condição da liberdade encontrou reconhecimento público e continuidade até os nossos dias, contribuindo na institucionalização da liberdade de cátedra.

De modo geral, nas democracias liberais se construiu paulatinamente o consenso coletivo em torno da ideia de que a educação escolar e secular tornaria possível ao indivíduo desenvolver as competências cognitivas e emocionais necessárias para escolher de modo autônomo e livre o seu próprio destino biográfico, independentemente de qualquer vínculo pessoal de origem (parentesco, pertença de classe, etc.). Não por acaso, muitos liberais enxergaram na educação secular uma condição de libertação dos vínculos tradicionais (e de todos os modos de sujeição correspondentes a esses vínculos). Claro, isso não significa advogar em defesa de uma ruptura com a tradição (familiar), mas a internalizar no indivíduo o poder de livre revisão reflexiva de sua atitude para com os vínculos domésticos anteriores (crenças, valores e comportamentos da família de origem), o que significa a prática da autonomia individual.

Limitando o horizonte de possibilidades do exercício da liberdade

Ao condicionar a disposição de teorias científicas, ideias e crenças compartilhadas em ambiente escolar à devida aprovação e filtro de pais das alunas e alunos, a proposta de lei bloqueia uma das formas mais importantes de exercício da liberdade individual no contexto das sociedades democráticas liberais, qual seja, a liberdade do sujeito em construir sua própria narrativa de vida e singularidade, o que inclui a liberdade de se diferenciar subjetivamente de seus familiares. Ora, é no contato com a diversidade de ideias, valores e crenças que o indivíduo poderá construir, mediante experimentações subjetivas diversificadas, sua própria compreensão de “originalidade”, um “hiperbem” de civilização em nossa contemporaneidade.

Quem conhece com mais familiaridade o cotidiano nas salas de aulas, sabe muito bem que a diversidade é o princípio tácito da prática escolar. Se nas  aulas de sociologia ou história, a/o estudante acumula conhecimentos sobre as modalidades de determinações sociais, culturais e econômicas do comportamento humano, na aula de biologia, a/o mesmo estudante aprende sobre os diferentes modos de determinação biológica do comportamento. Se na aula de filosofia, a/o estudante aprende a ampliar e expandir sua capacidade cognitiva de abstração e objetivação reflexiva do mundo, nas aulas de matemática e física, a/o mesma/o estudante é continuamente estimulada e engajada na prática de resolução pragmática de problemáticas de cálculo lógico-racional. Se nas aulas de gramática, a/o estudante aprende as normas e estruturas da linguagem, nas aulas de literatura e artes, as/os estudantes aprendem a desenvolver a imaginação e criatividade nas artes e jogos de interação entre linguagem e sentimentos. Tudo isso num contexto escolar habitado por uma diversidade de educadoras e educadores com valores, crenças e opiniões dos mais distintos possíveis.

Por essa razão e infinitas outras mais, o risco da “doutrinação ideológica” praticada em ambiente escolar não encontra verossimilhança sustentável. Ainda que existam professoras e professores que pratiquem proselitismo político em sala de aula, com frequência, suas pregações ideológicas não chegam a ganhar as mentes e corações de 2 ou 3 três estudantes. O mais provável é acumularem as antipatias das/dos alunas/alunos, estes, muito mais preocupadas/preocupados com os conteúdos escolares que possibilitem a aprovação em vestibulares e no ENEM.

Considerando que o Estado Democrático de Direito no Brasil, sem fugir a regra nas sociedades democráticas ocidentais, também é um “Estado Liberal”, torna-se imperativo de toda e todo jurista, operador/a do direito e cidadã/cidadão comprometidos com a democracia liberal, se posicionarem frontalmente contra o projeto que representa um ataque ao ideal de liberdade individual. A aprovação de tal projeto significa impor limites às condições de possibilidade de autolegislação e autorrealização do indivíduo, e isso é, além de inconstitucional, imoral e anticivilizatório. Noutros termos, impor uma subordinação da educação escolar ao filtro da aprovação/reprovação dos pais significa reabrir a porteira para o ressurgimento de velhas práticas de opressão e tirania familiar sobre a liberdade dos jovens, quiçá, legitimar institucionalmente as inúmeras práticas de assédio familiar, estas, fontes geradoras de sofrimentos nas relações assimétricas entre pais/mães e filhos/filhas (tema que ainda é considerado tabu na sociedade brasileira).

Finalmente, é importante lembrar que se convencionou um mau hábito de se atribuir à escola todas as responsabilidades (virtudes e mazelas) pela orientação das ações das jovens e jovens. Curiosa atitude de cegueira para a força estruturante de outras agencias socializadoras que povoam a vida cotidiana da juventude, a exemplo das redes familiares e de amizades, das mídias e contextos de lazer e consumo cultural. Maior ingenuidade ainda é achar que em todas esses redes de sociabilidade não circulam e se intercambiam também uma diversidade de valores, crenças e opiniões sobre o mundo. A cultura de juventude é complexa demais para ser capturada por uma única agencia socializadora. E a escola, no contexto atual de alta diferenciação social, não detém o protagonismo socializador do passado. Portanto, o projeto Escola Sem Partido é de uma estupidez e ignorância sociológica evidente.

Por tudo que foi dito acima, o projeto Escola Sem Partido deve ser entendido pelo o que de fato é: uma PATOLOGIA SOCIAL de nossa época.

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Link da Consulta Pública para votar a respeito do projeto: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666

Carlos Freitas

Sociólogo e Professor Doutor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Interesse por temas de Cultura Política e Sociedade. Contato profissional: calfreitas@hotmail.com

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