Rio Grande do Norte, sexta-feira, 26 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 14 de agosto de 2016

Brasília,

sobra cidade, faltam pessoas. Parece que dentro de você o foco é a sua imagem. Não é de se espantar, então, que você, há mais de 50 anos, basta-se. É que quando cheguei por ali, eu nada entendi, porque, em você, definitivamente, o destaque não é dado às pessoas. Você é ponto central, mas é moldura também. Nos seus espaços, Brasília, a gente se esforça para se tornar a sua imagem e semelhança: meu corpo aprendeu a ser mais angular, mais sinuoso; meu corpo moldou-se ao seu clima, mas, sobretudo, à sua geometria; para acompanhar seu desenho, tive de aprender a (re)desenhar-me. Meu corpo, nos dias em que habitei dentro dos seus limites, também foi maquete: pequena tentativa de projeção das suas arestas cinzas – essa cor que sobra de você, Brasília. E cinza não é cor de gente, é cor de planta arquitetônica, de projeto erguido no meio do Cerrado. Esse mesmo cinza, inusitadamente, e para a minha surpresa, trava batalhas e disputa espaços com o vermelho do barro ancestral – presença primeira no Cerrado. E por isso, Brasília, retorno ao ponto inicial: você sobra, você transborda. Em um dado momento, estirei os olhos em busca de componentes humanos, mas nada. Um susto! Foi de susto composta a primeira impressão tida ao deparar-me com você. Susto mesmo porque quem vem de outro sonho feliz de cidade demora a acostumar-se a chamar você de realidade. Sobra de você até uma afetação por organização que me assustou também, porque tudo em você soa planejado, ensaiado, cuidadosamente medido, dosado – inclusive o passo das pessoas saindo do trabalho, ao fim da tarde, apressadas, desfilando em frente aos Ministérios. É orquestrado, também, o farfalhar das folhas das tantas árvores que ocupam, pesadamente, as tardes da sua composição, que sobra. E sobra, além de tudo, a falta das suas esquinas! (Em quais lugares, afinal, podem se esbarrar os desavisados que, posteriormente, se apaixonarão?) Sobra também surpresa diante da sua Catedral com anjos suspensos – confesso que desejei que aqueles anjos despencassem e causassem grande estardalhaço e me provassem de uma vez por todas que Deus existe e não mora em Brasília – onde pensei mais no homem do que em Deus, pois só conseguia louvar a beleza do que o homem pode com a sua própria força moldar. Surpresa, susto! A minha devoção estava quase inteira ligada ao espírito humano – e, se Deus mora nele, não ficará enciumado dessa minha percepção – se bem que penso justamente que aquela Catedral foi erigida para se entoar cânticos à inventividade humana. Você, Brasília, parece conseguir, como essa sua Catedral, a ousadia da criatura que usurpa o lugar do criador. Você, Brasília, para além, por muitos momentos, sugere ter brotado no Cerrado por obra e graça da sua própria energia. Me parece que o componente humano que deveria pulsar em você tenta ser apagado pela sua soberba de cimento e concreto. No futuro, com certeza, a sua construção será suspeita: como as pirâmides do Egito, as pessoas não acreditarão que a sua gênese, Brasília, deve-se aos humanos. Felizmente, apesar de tanta sobra, apesar das suas muitas tentativas de me desumanizar (e de se desumanizar), há o frio de Brasília e as suas boas noites geladas, que me lembraram antiteticamente as minhas noites natalenses e me fizeram conversar mais perto e abraçar mais forte o meu irmão. Reafirmo, Brasília, entre assustado e admirado, que você sobra!; reafirmo que antes de você e depois de você ainda há Brasília. Inexplicavelmente, há a beleza, a dureza, a crueldade. Inexplicavelmente, há Brasília!

Guilherme Henrique Cavalcante

Guilherme Henrique Cavalcante, 20, matutropical: meio sertão, meio litoral — Natal/RN

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