Rio Grande do Norte, sexta-feira, 26 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 10 de dezembro de 2016

Crônica pra quem gosta de cachorro

postado por Beatriz Madruga

Tem uma parte triste e escrota na vida da gente, nas perdas da gente, que ninguém nunca avisa a tempo que é tão triste e escrota, só dizem que vai acontecer, que é um pouco difícil, sim, mas passa. Eu, se pudesse, pisaria um pouco em todas as pessoas que diante do ruim gostam de dizer que passa, que vai passar, porque isso não é conforto. Uma frase dessa numa hora difícil é sempre covarde, e só.

Não disseram o quanto é difícil ver seu cachorro chegar pequeno, crescer, envelhecer, adoecer repetidas vezes, fazer-se mais velho.

Quando Hanna chegou aqui eu tinha 12 anos de idade, e ela alguns dias. Já se passaram 14 anos desde aí e, fazendo porcamente as contas, sei que tenho mais tempo de vida com Hanna do que sem ela.

Ela chegou animada e bem louca feito todo filhote, com os pelos pretos e brancos e um pouco de marrom, criou hábitos estranhos de cachorra fêmea que mora sem outros cachorros, hábitos que incluem não gostar tanto de outros animais, se dar bem com a solidão, não gostar de ficar no colo, morder quem a acorda e quem pega sua comida. Nós somos muito parecidas, verdade.

É pesado ver que o tempo pro cachorro passa mais rápido, que logo ele jovem, depois adulto, logo ele é velho e logo passa por cirurgias e internações e vem pra casa de novo. Enquanto eu ainda estou aqui na adolescência, pensando em tatuagens e vivendo às custas da minha mãe.

Hanna aguenta o tranco porque é forte, é sem frescura, e brava em dois sentidos. Parece que todos os dias ela me diz que eu reclamo muito; quando olho pra ela lembro disso. Reclamo muito e tenho uma vida imensa e intensa. Ela tem vida mais curta e não tá nem aí; vive e dorme e come cenouras e toma água de coco em excesso. É feliz em excesso também; sempre foi.

Viver com cachorro, crescer com cachorro faz você alguém menos humano e mais canino; no caso, alguém muito melhor. Sempre tenho a sensação de que Hanna fica por aqui num modo de dizer à gente que amar é a melhor parte do dia e da vida, que vale mais o carinho do que qualquer raiva e qualquer dor que se sinta. É problemático cuidar de cada novo sintoma e se recuperar de cada novo susto, o desespero só acompanha. Mas a cada novo susto ruim, novo dia difícil, a gente chega, ela se chega bem perto, sorri com as

orelhas e abana o rabo como se fosse a mesma criança destruidora de sapatos de anos atrás. A companhia fica maior a cada tempo, numa gratidão bem sucedida dos dois lados. Parece que a gente diz com a presença um do outro, eu de cá e ela de lá, o quanto somos felizes simplesmente por estarmos juntas tanto tempo.

E assim a gente vai, numa tristeza remediada pela lealdade, remediada por uma relação sem igual, sem repetição no mundo nem na própria vida.

Beatriz Madruga

Bia formou-se em Psicologia, mas até hoje não sabe por quê. É estudante de Letras. Prefere ler e escrever a conversar. Em 2015, publicou "Aos Pedaços, Com Tudo" pela Jovens Escribas.

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