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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 30 de janeiro de 2017

Em face da exceção, os Direitos Humanos

postado por Carta Potiguar

Por Raphael Nascimento (Cientista Social)

No final dos anos 1970, um dos temas investigados por Michel Foucault foi a emergência de um tipo de poder exercido pelos Estados modernos. O biopoder, como chamou, estava centrado na regulação das populações, visava o controle das coletividades através da preservação da vida biológica. Por isso, os governos se valiam de instrumentos como a demografia e a estatística, além de outros saberes, para controlar as políticas de natalidade, os sistemas de saúde, os processos de urbanização e as demais ações estatais voltadas para a preservação da vida das populações.  Para Foucault, a biopolítica – a política do biopoder – foi determinante para o desenvolvimento do capitalismo, pois potencializava a força dos corpos para o trabalho, ao mesmo tempo em que produzia populações obedientes.

exercitoEntretanto, o filósofo francês percebeu que, ao lado das práticas de preservação da vida e disciplina dos corpos, havia o retorno de um poder que caracterizou como soberano, exercido de forma violenta sobre os indivíduos. As práticas punitivas que caracterizaram o medievo não tinham desaparecido, retornavam como um fantasma do rei sobre parte da população. Elas se concretizavam a partir de um corte sobre a sociedade, operando processos de separação que ditavam quem deveria permanecer com vida e quem deveria ser exposto à morte. Por isso que, do stalinismo ao nazismo, guerras foram travadas sob a justificativa da preservação da pureza das raças. A esse outro lado da biopolítica, Foucault deu o nome de racismo de Estado.

Na atualidade, Giorgio Agamben tem prosseguido essa discussão. Mas o que em Foucault é uma contradição dentro da biopolítica, em Agamben é um elemento constituinte das ações estatais que têm o corpo biológico como alvo principal. É nesse sentido que, em Estado de exceção, propõe uma arqueologia do direito, para investigar como o retorno do poder de matar se insere no discurso jurídico. Explorando um campo que havia sido pouco destrinchado por Foucault, mostra como o direito opera um processo que inclui os cidadãos enquanto, igualmente, os exclui. Para uma melhor compreensão disso, basta vermos o exemplo de qualquer ditadura.

Porém, a contribuição do teórico italiano para a política contemporânea está na possibilidade de pensarmos como os processos de exceção, que caracterizaram os regimes autoritários e totalitários no mundo, guardam fortes relações com as atuais democracias neoliberais. Se olharmos para a maneira como são tratadas a população LGBT, os negros e atualmente refugiados na Europa, veremos como o racismo de Estado e a política de exceção são retomados a partir das mais variadas formas, tendo como ponto em comum a produção de inimigos internos, elimináveis. Assim se constituem o que chamamos de vidas matáveis, aquelas para as quais as possibilidades de reconhecimento são negadas em todas as formas.

Não há maneira para compreendermos o que está acontecendo no sistema prisional brasileiro que não passe, direta ou indiretamente, pelas mesmas questões que levantaram Foucault e Agamben. Isso porque o crescimento das facções no país e a constante retirada de direitos nos processos jurídicos e nas condições de habitação de nossas prisões guardam fortes relações com as políticas de exceção sobre a parte da população que é vítima desse racismo de Estado. Pensar a partir desses dois autores não significa negar as singularidades do caso brasileiro, mas usar essas noções como um aporte para a reflexão sobre algo como uma exceção à brasileira.

A começar, as duas questões centrais para a análise do crescimento das facções no país são a guerra às drogas e os processos de territorialização desenvolvidos pelas facções criminosas. Como sabemos, desde a criação da Lei de Drogas de 2006, houve um aumento de quase 400% das prisões por tráfico. O encarceramento em massa promovido pelas políticas de drogas atinge, sobretudo, jovens negros das periferias do país, uma vez que a oposição estratégica entre usuário e traficante possui contornos de classe e origem étnica. Em um país que é constituído por representações dicotômicas de cidadãos de bem e bandidos, uma divisão como essa da lei de drogas só aprofunda as desigualdades nas formas de punição. São essas mesmas representações replicadas pelos programas policiais de todos os dias, a mesma divisão também reproduzida pelo populismo penal dos candidatos a cargos no legislativo e executivo. Divisão, portanto, que tem fortes semelhanças com aquela pensada por Foucault quando falou do racismo de Estado.

Esse mesmo corte também acaba legitimando a existência de territórios, nas grandes e pequenas capitais do país, totalmente desprovidos das instituições básicas e das condições de infraestrutura mínimas para a vida. Zonas onde o Estado só entra com as sirenes ligadas, espaços onde o expor a morte é banalizado e transmitido todos os dias nas televisões. Mas não é essa mesma recusa das instituições estatais que abre uma lacuna para outros processos de territorialização? Essa pergunta já vem sendo respondida há tempos pelas facções criminosas, que aproveitam o fomento produzido pela guerra às drogas para ocupar os territórios abandonados e construir suas empresas do tráfico.

O “problema” surge para os governos quando, por causa dessa mesma lacuna estatal, as facções começam a se inspirar na forma-Estado: comandando territórios onde quase tudo é possível, construindo suas microinstituições previdenciárias e estimulando exércitos para a defesa de seu território. O tráfico de armas e a disputa pelos espaços ocupados por outras facções são exemplos da verdadeira lógica de guerra reproduzida nas periferias brasileiras. É dentro desses conflitos que atuam nossas polícias, ora fazendo vista grossa diante do tráfico, ora reprimindo os pequenos traficantes. É por isso que podemos falar de algo parecido a uma exceção à brasileira, pois aqui os territórios da exceção acabam se constituindo como espaços de resistência à ordem instituída, tanto pela ação das facções, quanto pela ação das polícias.

A segunda problemática diz respeito a uma quase idêntica reprodução desses casos no nosso sistema prisional. Não esqueçamos que as prisões, como as periferias, são espaços da exceção, onde quase tudo é possível. E, assim como as favelas, estão sendo colonizadas pelas mesmas facções que, como eu falei, se apressam em ganhar a forma-Estado. Vejam o caso de Alcaçuz, em que cada pavilhão tornou-se território de uma facção. Os conflitos exibidos nos últimos noticiários são a melhor ilustração da guerra de que estou falando. Neles, os presos construíram suas estratégias, se armaram como puderam e foram, como autênticos soldados, em busca da conquista do território inimigo.

Mas entre a favela e os presídios existem outros espaços. Quando a guerra explode nesses dois polos, o território do meio também se torna uma zona em guerra. A óbvia constatação não parece ter sido feita pelos responsáveis pela segurança e sistema prisional dos estados que vêm sofrendo com esses conflitos, o que também não é de se admirar – nossos lampiões pós-modernos parecem ter outras preocupações. Como já mostrou o sociólogo escocês David Garland, a lógica punitiva contemporânea tem a retirada de cena dos especialistas em segurança pública como uma de suas características principais.

Dessa forma, vemos como toda a rede que culmina nos conflitos que assistimos nos últimos dias é produto da lógica de exceção capilarizada na sociedade brasileira, materializada na geografia excludente das cidades, nos discursos jurídicos dicotômicos e na atividade policial inquisitorial. Trazer o problema para o plano da política de exceção não significa tornar a discussão abstrata, mas não se render às armadilhas do poder, que cada vez mais oculta a produção crítica sobre a segurança pública e as desigualdades no país.

A pergunta que se coloca é: como esperar de um Estado que fomenta a exceção uma transformação dessas mesmas políticas e instituições? Questão parecida se colocava para Foucault quando, em 1981, criou o Comitê Internacional contra a Pirataria, que lutava contra o fim da violência contra os refugiados na Europa. Com seu manifesto Face aos governos, os direitos humanos, Foucault respondia à indagação chamando a população para a luta contra os episódios que motivaram sua militância. Entretanto, seu apelo não deixava de colocar os direitos humanos sob suspeição – como fez durante toda a sua vida –, numa tentativa de fugir de um humanismo que muitas vezes se confunde com a ordem. Também podemos dizer que a luta pelos direitos humanos deve escapar das ingenuidades que podem surgir pelo caminho. Basta vermos o exemplo da fracassada tentativa de humanização das prisões do Rio durante o governo Brizola, rechaçada pelos próprios presos, para percebemos que a questão é muito mais complexa e envolve, necessariamente, a luta dentro e fora do sistema prisional contra o estado de exceção que vivemos.

 

 

 

 

Carta Potiguar

Conselho Editorial

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