Rio Grande do Norte, segunda-feira, 13 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 7 de abril de 2012

Eles são clientes, devem comer bem. Você é empregado, não precisa de boa comida

postado por David Rêgo

Uma longa tradição filosófica associa nosso comportamento e nossa personalidade ao que comemos. No passado, “tratados de medicina” afirmam que não é aconselhável dar pimenta para mulheres virgens. Acreditava-se que a pimenta iria gerar um “fogo” que levaria, mesmo a mais pura das mulheres, a cometer atos libidinosos. Em dias de hoje ainda vemos uma série de associações entre alimentos e comportamento, mas não com esta perspectiva.

Pesquisas mais modernas não associam diretamente alimento e comportamento. A associação é feita de forma distinta. O alimento é visto como ritual onde, através dele, incorporamos uma série de virtudes.

Já que estamos na semana santa… A chamada “primeira eucaristia” que tem seu rito “concretizado” ao se comer a hóstia e beber o vinho é um nítido exemplo do que tratamos. Ao ingerir a hóstia (o corpo de cristo) e o vinho (seu sangue) adquiro, naquele momento, as qualidades do próprio Deus. A comida, durante o ritual, tem a função de representar as qualidades desejadas.

Os rituais não precisam ser propriamente “sagrados” para que o alimento “represente” algo. Basta lembrar o caso das “lagostas de Bangu 8”. Em resumo, descobriu-se que “presos estavam comendo lagosta e salmão”. O alimento, de acordo com investigações, foi enviado por familiares de um dos presos. No geral, pouco importa se foram familiares, o que reina no imaginário popular é que “gente que está nesse tipo de lugar não merece esse tipo de comida”.

É precisamente sobre este ponto que chamo atenção. A comida representa, na realidade, o nosso próprio valor. Neste sentido a fome é, na realidade, a mais completa expressão da falta de prestígio que alguém possui, ela é o reflexo (não a causa) de um grupo de pessoas sem o menor prestígio social.

Durante o feridão da semana santa fui ao North Shopping. Na ocasião, jantar. Ao olhar para o lado da minha mesa vi os garçons de um restaurante que também jantavam. A cena revoltou-me quando me dei conta do contexto: eles estavam jantando “macarrão com salsicha”. Observei melhor e pude perceber que “macarrão com salshicha” não está entre as opções para os clientes. Mesmo um restaurante, que trabalha com toneladas de comida (e todos nós sabemos que quanto maior a produção o preço tende a cair), nega-se a dar comida de qualidade para seus trabalhadores. Prefere fazer “um prato à parte” e alimentá-los com o que existe de mais barato e menos custoso. Ainda repensaria a crítica caso o dono do restaurante estivesse alimentando um exército, mas tratam-se de poucas pessoas. Dar aos funcionários macarrão com salsisha para que? No final do mês economizar R$ 200 frente à um lucro de milhares de reais?

“Eles são clientes, devem comer bem. Você é empregado, não precisa de boa comida”.

Isto, no fundo, demonstra como alguns empresários tratam seus funcionários: querem serviço de primeira para seu estabelecimento e acham que ao pagar o salário de miséria instituído pelo Estado brasileiro “estão fazendo mais do que suas obrigações”. Esquecem-se que a vida é um “jogo social” e que pequenos gestos como dar “tratamento diferenciado” aos funcionários não passa desapercebido e é a fagulha para uma série de conflitos que poderiam ser evitados.

Esta análise que faço, provavelmente, todos os empregados do dono do estabelecimento também já fizeram. Este tipo de ação é a fagulha para o desdobramento do chamado “ódio de classe”. Os “donos” tratam os trabalhadores como “animais” e os trabalhadores odeiam os donos por isso e vão, sempre que puder, boicotar o ambiente de trabalho.

Ao ver isto a única coisa que me veio à mente foi o personagem João Romão, do livro “O cortiço”, piorado. João Romão era um “empresário”, dono de um cortiço, casado com uma escrava. Era tão avarento, mas tão avarento que comia as sobras de comida dos clientes para economizar com as refeições e pregou um “golpe” até mesmo na própria mulher. Ambicioso e sem escrúpulos João Romão tira o máximo que pode ao explorar o trabalho dos miseráveis. E eu pensava que João Romão era só literatura…

David Rêgo

Sociólogo, antropólogo e cientista político (UFRN). Professor do ensino médio e superior. Áreas de interesse: Artes marciais, política, movimentos sociais, quadrinhos e tecnologia.

2 Responses

  1. Vitorpipolo disse:

    A diarista de minha casa contou que  quando trabalhou por um periodo na cozinha de um motel de Natal, a dona comprava figado velho para a refeição dos funcionarios, teve gente que até passou mal.

  2. Cecília Gabriela disse:

    Estou em um novo trabalho há alguns dias, uma pizzaria, e também é muito miserável e avarento.No primeiro dia,fui jantar, e pra minha surpresa, não era pizza como no meu antigo trabalho, era arroz frio muito mal feito com ovo, uma tentativa de omelete, fria, mole, muito gordurosa e nojenta. Fiquei com um pé atrás, não entendi aquilo por não estar acostumada com isso, mas fiz meu prato com pouquíssima comida. Coloquei na boca e senti aquela meleca fedida, podre, não consegui engolir, saí de perto dos outros funcionários peguei papel, cuspi, voltei e fui jogar fora, o “cozinheiro” perguntou por que, eu disse que não gosto de ovo mole, não comi mais lá, agora levo sempre alguma coisa de casa. Eu tava com muita fome e dor de cabeça que só piorava.Quando eu passo por essas situações, sinto uma mistura de sensações, fico muito triste, com raiva, revolta, sensação de impotência. Já havia sentido isso antes, mas não lembrava quando, até que me lembrei, quando fui trabalhar num buffet uma vez, foi assim, comida muito boa para os convidados, e pra nós, um macarrão horrível fedendo ovo. Em um momento da festa, fizemos uma espécie de piquenique para as crianças, e percebi que as sobras, as monitoras pegavam pra comer. A revolta foi muito grande. Tanto que estava decidida a levar meu estoque de comida caso eu voltasse lá (com direito às coisas que eu mais gosto, coxinha, croissant de frango, quatro queijos e de chocolate, lasanha com muito queijo e molho, iogurte, torta de chocolate, pão de queijo, todynho, suco…), mesmo que eu não comendo tudo, só pra esfregar na cara deles que não é porque sou pobre, que não como bem, muito pelo contrário, na minha casa e na casa de todos da minha família é tudo muito farto, a gente falta estourar de tanto comer, principalmente quando estamos todos reunidos. Já alguns ricos, se não a maioria, são mesquinhos, avarentos, miseráveis e adoram chorar por dinheiro. Minha mãe tem patrões muito ricos que fazem cada coisa. Dão danone pra criança, ela não come tudo e guardam na geladeira aquele treco babado pra comer depois, a mesma coisa com a comida. É tudo contado pra cozinhar, não pode passar um grão de arroz a mais, outra dá comida velha para os pedreiros e faz nova pra eles, até frango azedo ela dá pra eles almoçarem. Quando vem algum pedreiro, pintor, alguém pra fazer serviço aqui em casa, minha mãe faz café, ferve leite, compra pães, frios, pão de queijo, bolo, arruma a mesa com a melhor toalha, as melhores louças, esquenta até a xícara pro café não esfriar, faz almoço, café da tarde e até janta, caso passem o dia inteiro. Totalmente o contrário desses ricos, e minha mãe sempre me diz que vários patrões dela acham que ela não come bem por ser faxineira, acham que ela não gosta de azeite porque ela não está acostumada por ser caro e ela não poder comprar, mas aqui sempre tem azeite e ela usa pra fazer as comidas de dieta dela, mas não gosta por causa do gosto, não porque não pode comprar, ela é a que ganha melhor aqui em casa, mais que o dobro que eu. Nunca passei fome, exceto essas duas vezes, e vou sempre levar minha comida, vou esfregar na cara deles que posso comer bem, eles vão ver que não é muito o que estão oferecendo, pois eles acham que essa comida está de bom tamanho “para o que a gente come” para o que eles devem pensar que comemos.

Sociedade e Cultura

Quem não tem um amigo "pegador"?

O mundo das bundas...
Sociedade e Cultura

O mundo das bundas: sensualidade ou vulgaridade?