Rio Grande do Norte, sexta-feira, 03 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 28 de abril de 2012

Igualdade e Política de Cotas

postado por Alyson Freire

Imagem: gegeispretee18

Não é novidade, em nossa história, que as mudanças sociais de tendência niveladora e democratizante sejam, quase sempre, recebidas com um sentimento de preocupação pelos setores conservadores de nossa sociedade. Principalmente quando elas são acompanhadas com o bilhete de ingresso à espaços e funções, socialmente valorizados, outrora negados ou restritos a determinados setores da população. Nos últimos tempos, o desconforto é ainda maior porque essas mudanças estão sendo conduzidas, com protagonismo, por instituições de forte legitimidade, como o Estado, a Universidade, o Supremo Tribunal Federal.

A reação imediata é sempre o alarde e a ameaça que tais mudanças acarretariam nos valores considerados fundantes das “tradições nacionais” ou na Ordem jurídica do país, ensejando precedentes e consequências provavelmente nefastas e perigosas num futuro próximo. Assim, de Demétrio Magnoli à Reinaldo Azevedo, especula, em dose considerável, o pensamento conservador nacional.

Dentre os contrargumentos mobilizados em oposição às políticas de cotas em geral – sociais e raciais – um, em particular, chama atenção pelo apelo à abstração como arma crítica contra os favoráveis a implantação das cotas. De base legalista, normativa, ele invoca o princípio constitucional da igualdade entre os homens, independente de suas diferenças de classe, de gênero, de etnia, etc.. Além de ferir o mérito, as cotas feririam o princípio de isonomia ao proporcionar pontos de partida desiguais na disputa por uma vaga, privilegiando uns em detrimento dos outros.

Trata-se do apelo ao um universalismo demasiadamente abstrato, descarnado da vida real e naturalizado dos valores da Ordem jurídica liberal. Sob esse ângulo, as desigualdades existentes seriam a consequência natural e lógica da competição entre indivíduos iguais mas diferentes em termos de talento e esforço pessoal.

O erro dessa perspectiva consiste em desconsiderar o fato de que, nas sociedades modernas e relativamente democráticas, os “pontos de partida desiguais” nas oportunidades e nas condições de competição social são anteriores aos indivíduos e à própria competição social. Nas sociedades modernas, a igualdade é um pressuposto abstrato ao passo que a desigualdade é um pressuposto social, fático, fruto dos desequilíbrios decorrentes da organização econômica e social desigual de recursos e poder, dos marcadores sociais estratificadores (classe, gênero, raça), do peso da herança histórica, dos estigmas e preconceitos, entre outros fatores produtores e reprodutores da desigualdade.

Sustentar o universalismo e a validade do princípio face a crueza das desigualdades e dos desequilíbrios é mais do que simplesmente denegar a existência destes últimos; é não perceber que tal convicção mantida em seu formalismo sobre todas as coisas acarreta em vantagens e privilégios que só acentuam o grau e a persistência da desigualdade.

Os que apelam, com indignação e convicção, aos princípios formais e abstratos, esquecem-se que, ao fim e ao cabo, a “desigualdade” instituída pelas cotas não visa outra coisa senão alcançar uma igualdade mais concreta, que traduza a abstração da fórmula em realidade social.

Para que o “todos iguais perante a lei” exista de fato é preciso reconhecer que esse “todos” é formado por partes diferenciadas, cujas condições para desfrutar a igualdade perante a lei e diante dos outros não são iguais por razões exteriores à norma, isto é, derivadas da história, cultura, preconceitos, limitações físicas, etc. Daí que, para atingir um grau razoável de efetividade concreta, poderia se dizer mesmo de cidadania, é necessário alçar os que estão aquém desse patamar de igualdade de condições. Portanto, isto só é possível mediante compensações, proteções e apoios legais que os favoreçam em relação aos demais.

O triunfo obstinado da igualdade, para usar a expressão clássica de Tocqueville,  necessita, para ser efetiva e real, da promoção da “desigualdade”, ou seja, dos tratamentos diferenciados dispensado a grupos socialmente mais vulneráveis, desfavorecidos, estigmatizados e em desvantagem – mulheres, negros, homossexuais, índios, portadores de necessidades especiais, etc. A política de cotas é uma ação institucional que visa tornar a igualdade de direito ou formal em igualdade de fato, concreta. Logo, antes de ferir o princípio da igualdade, a política de cotas aperfeiçoa-o em sua correspondência concreta com a vida social.

A compreensão acerca do princípio de igualdade deve, com efeito, conjugar, de forma interdependente, a letra fria da lei com à história efetiva e à sociedade real, pois são nestas últimas, e não propriamente nas normas em si, que os cidadãos concretos vivem.  É, a meu ver, essa postura interpretativa mais relacional, telúrica e aberta, combinada com um esforço político-normativo para fazer valer os princípios constitucionais na prática, e na apenas na forma, que os ministros do STF, nos últimos tempos, tem adotado.

Para alguns, tal postura seria “ativismo jurídico” ou submissão das normas à “voz rouca das ruas”. Particularmente, vejo como avanço e complexificação da avaliação e da interpretação jurídicas na tentativa de estreitar as lacunas entre o mundo das normas e a sociedade, entre a representação normativa dos direitos fundamentais, positivada na Constituição, e a efetividade concreta e tensa dos direitos fundamentais na vida e nas relações sociais. Como diria o filósofo e sociólogo Jurgen Habermas, o “direito não é um sistema narcisisticamente fechado em si mesmo”.

Priorizar a validade de fórmulas abstratas ou princípios universais sem importar-se com as desigualdades concretas, é o mesmo que por, com as próprias mãos, uma venda sobre os olhos. Uma venda que opta, em nome da pureza e da validade ideal da formalização das relações humanas e da realidade, não enxergar como de fato as relações humanas, as oportunidades sociais e as formas de convívio estão estruturadas de maneira profundamente desigual, nem o seu efeito devastador na realização das aspirações e projetos das pessoas.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

8 Responses

  1. Tiago Cantalice disse:

    Belo texto! Para os que criticam as cotas em nome dessa pretensa isonomia fundante, devemos lembrar que num estado democrático de direito não basta a igualdade formal (cravada pela lei), mas a igualdade material (arraigada a muito tempo na doutrina e jurisprudência). Por mais antagônico que pareça, para atingirmos a igualdade é preciso reconhecer as diferenças, faz-se fundamental um tratamento desigual aos desiguais.

    • felixmaranganha disse:

      Igualdade é igualdade independente de qual seja o seu adjetivo. A igualdade deve ser de oportunidades (o que se faz na educação de base).

  2. Daniel Menezes disse:

    Tiago,

    que tal se tornar colunista da @cartapotiguar:disqus?

    danielgmenezes@hotmail.com cartapotiguar@gmail.com
     
    Se lhe interessar, nos passa um email…

    Ou então disponibiliza o seu…

    Para nós da carta seria uma honra…

  3. Andssoares disse:

    Caro Alyson,

    Este texto chama atenção para algo que,os se dizem
    contrários às políticas afirmativas em nosso país,não conseguem enxergar. Vale
    lembrar que a Constituição brasileira de 1988 é documento repleto de perfeições
    democráticas, mas temos que levar em conta os processos históricos e culturais
    de um país de legado escravocrata, de latifúndio, de forte concentração de
    renda, que impedem seu pleno exercício.

    Neste legado foram quase 380 anos em que os negros eram
    considerados objetos falantes (ou subespécies) e a sociedade contemporânea
    ainda não conseguiu se “desintoxicar” desta percepção pejorativa em relação aos
    cidadãos de cor negra. Mesmo com a existência do “todos iguais perante a lei”,
    é visível a existência de uma das piores formas de exclusão que é racismo
    velado e camuflado.

    A miséria brasileira tem conotação racial, os brancos pobres
    não representam a mesma quantidade de mulatos, pardos e negros da mesma
    condição. Quero Demétrio Magnoli diante de uma turma do curso de Medicina e de
    outra do Ensino Médio do ensino público na periferia, e afirmar que o problema
    é apenas a miséria e não o racismo.

    Ainda a ingenuidade dos que acreditam que uma possível
    solução seria o acesso igualitário a partir da Educação Infantil: espera
    inútil! Os concentradores de renda e poder jamais vão permitir tal revolução em
    nosso país.

    Mérito vão obter aqueles não tiveram nenhum impedimento ou
    obstáculo em seu trajeto educacionalescolar. Se um outro mulatopardonegro
    não obteve foi por incompetência ou fatalidade, já que as oportunidades são iguais
    conforme a lei.

    Os que estão no poder vão usar este discurso das fórmulas abstratas
    eou princípios universais, evitando que a sociedade discuta as desigualdades concretas
    existentes.

  4. Jeremias disse:

    O Brasil está avançando em todos os sentidos, e é isso que irrita as forças conservadores. Parabéns pelo texto!

  5. felixmaranganha disse:

    O Brasil passou recentemente (em 1964 e mais gravemente em 1969 com o AI-5) por um golpe de Estado que subverteu a ordem legal, aniquilou as instituições, destruiu a cultura democrática, perseguiu, torturou e matou gente inocente pelo “crime” de escrever artigos criticando o governo e pelo “crime” de querer a volta da normalidade legal, jurídica e institucional. A isso eu acrescentaria que nas escolas essa geração foi educada para se acostumar e mesmo considerar normal atos de subversão da ordem legal, aniquilação das instituições, destruição da cultura democrática, perseguição, tortura e prejuízo de gente inocente pelo “crime” de se expressar livremente e pelo “crime” de considerar determinadas decisões do Estado danosas para as liberdades individuais. Essa geração aprendeu a justificar todas essas coisas em nome de um “Bem Comum”. Algumas políticas que favorecem movimentos sociais são assim: transgridem valores absolutos em nome de uma “igualdade material”, achando que passar por cima de liberdades individuais para conseguir tal igualdade é justificado, perseguindo, matando e ameaçando todos aqueles que se colocam contrários à perda de direitos individuais em larga escala.

    Primeiro, o que antes era negado a determinadas pessoas o era em nome de uma abstração (afinal, que diferença há mesmo entre um branco e um negro? e onde começa um e termina o outro?), e assim, o grupo excluído em nome dessa abstração assume o direito e o orgulho à abstração que antes foi criada pelo outro grupo. Ao meu ver, a política de cotas é insistir nessas abstrações e, em vez de lutar para que ela deixe de ser relevante (educação, conscientização, real punição dos racistas) o que se faz é tão somente legitimá-la, uma vez que usa justo o critério que queriam eliminar que se torna pré-requisito para ter o privilégio de uma vaga.

    Segundo, há duas formas de desigualdade: a acidental e a intencional. A desigualdade acidental aparece no simples ato estatístico (por exemplo, há menos baixinho entre as classes mais altas, o que é acidental). A desigualdade intencional pauta-se em ações que visem claramente excluir alguém que seja portador de uma idiossincrasia, gerando uma “abstração de classe”. Darei meu exemplo: sou descendente de ciganos, consegui muita coisa sem cotas, sem roubo e sem politicagem, e assim pretendo continuar. Moro debaixo da ponte, mas não subverto nenhum dos meus princípios. Ao mesmo tempo, tudo o que eu conseguir na vida, será por esforço, por mérito. Tudo o que eu não conseguir, a única coisa que espero é que quem conseguiu tenha feito isso por mérito. Não importa quem sofreu mais para conseguir, quem sofreu menos, o mérito é o mesmo, independente do sofrimento. O mérito é uma razão lógica bem simples: “Se estudar me garante vaga na universidade, então mereço a vaga por ter estudado. Se eu mereço a vaga pelo simples fato de ser negro, então os critérios de entrada deixam de ser o estudo, afunda-se o mérito no oceano das abstrações e cria-se uma injustiça”.

    Terceiro, há uma diferença muito clara no conceito de igualdade no que tange à sua realização. Todos são iguais perante a lei (a própria DUDH prevê isso). Igualdade de oportunidades não significa que todos tenham os mesmos resultados, algumas vezes podendo ter maioria dessa categoria de pessoas, e outras vezes uma maioria daquele grupo de pessoas (se bem me lembro, antes da política de cotas, a turma em que entrei eu fui o único branco, e no ano seguinte, um rapaz foi o único negro).

    Quarto, as pessoas têm o costume de achar que temos de ter tantos por cento de determinada categoria de pessoas para haver igualdade, quando, na verdade, pouco importa quantos por cento de quem está em tantos por cento de instituições, o que importa é que o único critério para alcançá-las deve ser o mérito, e que a vaga deve ser disponibilizada independente de cor, tipo de cabelo, formato do rosto, peso, origem étnica, religião, sexo, orientação sexual, alimentação, ideologia, altura ou seja lá o que for. A saída é punir quem exerce essa discriminação para que haja real igualdade de oportunidades, e deixando o resto a cargo dos indivíduos. Muitos daqueles com quem trabalho, por exemplo, são pessoas de origem abastada, que receberam boa educação dos pais, mas isso não os torna menos meritórios, pelo contrários, apenas os torna mais preparados para serem meus médicos, meus advogados, meus professores.

    Quinto, a sociedade de classes é uma enganação, é insistir em uma abstração para legitimar a segregação, é dispor-se contra uma abstração, é insistir que ela tem menos direitos. Vamos lá: brancos têm menos direito à uma vaga na universidade? Se sim, qual o critério? E se esse critério se aplica a outras categorias de pessoas, porque elas também não têm o mesmo direito? E que tergiversação é essa que chama de direito tudo o que é privilégio?

    • felixmaranganha disse:

      Lembrando que a política de cotas fere diretamente os artigos VII e XXVI da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e usa irresponsavelmente o artigo VIII de um modo que é terminantemente proibido pelo artigo XXX.

      Como disse um amigo certa vez, as universidades estão, em seus cursos de Direito, formando meros autômatos, meras máquinas de calcular de códigos, leis e decisões judiciais. Estudantes de direitos tornaram-se meros decoradores de leis e decisões judiciais para fazer concurso e pouco pesquisam ou refletem sobre a realidade para a qual cada lei é/deve ser elaborada. O resultado disso é que, sempre que um absurdo é legitimado, o é debaixo de argumentos legais e, por vezes, pela pressão de determinados movimentos sociais, acostumados há anos a perverter a lei para “gerar uma jurisprudência” e assim legitimar seus absurdos de classe.

  6. Rômulo Dorneas Pereira disse:

    Parabéns pelo texto.

Sociedade e Cultura

O delírio digital de Nicolelis

Sociedade e Cultura

Direitos Humanos e Polícia: aliados no limite do poder