Rio Grande do Norte, domingo, 12 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 1 de junho de 2012

Direito da democracia: um Jogo de Avelórios

postado por Carta Potiguar

Por Jules Queiroz – Advogado

 

Creio que o livro “O Jogo das Contas de Vidro” (Das Glasperlenspiel ou Magister Ludi), de Hermann Hesse, é um dos grandes clássicos da literatura alemã.

Em suma, o livro se passa em uma província fictícia em algum momento no futuro chamada Castália, a Província Pedagógica, povoada por um corpo de intelectuais e estudiosos.

Os estudos dos castálicos passam pelos pontos mais abstratos e esotéricos da história da cultura, música e matemática, o que os separa das preocupações cotidianas do resto da humanidade.

Os habitantes de Castália praticam um jogo denominado Jogo de Avelórios que combina, através de movimentos de pequenas contas de vidro, os pontos mais complexos da história, música, matemática, geometria, dentre outros. As regras do jogo são tão complexas que são necessários anos de estudo apenas para compreendê-las.

Digressões literárias à parte, utilizamos aqui a metáfora do Jogo de Avelórios para configurar o jogo jurídico eleitoral. O embate entre candidatos, coligações, advogados e procuradores, mediados pelos juízes, por dentre as Cortes Eleitorais.

Assim como o Jogo de Avelórios, o objeto do jogo eleitoral é bastante conhecido por todos os jogadores, sejam ou não conhecedores profundos do Direito Eleitoral. Ora, as regras e o tempo da política, propaganda, dos movimentos da máquina administrativa, assim como a história, a música e a matemática no caso dos castálicos, são acessíveis e compreensíveis a qualquer interessado.

O que realmente é um privilégio dos juristas, em especial dos advogados, é conhecer não o conteúdo, mas os movimentos e a mecânica da Justiça Eleitoral, assim como os castálicos são os exclusivos conhecedores dos movimentos do complexo jogo de contas de vidro.

Noutros termos, a vantagem do advogado frente aos outros operadores das eleições é saber como fazer mover o Direito, possibilitando uma análise clara do tempo e modo estratégico para a prática de um ato processual.

Mas isso, evidentemente, acaba levando a um ciclo danoso no processo democrático.

Isso porque a crescente jurisdicionalização de todos os aspectos da eleição acabam tornando a democracia acessível e manipulável exclusivamente pela “elite” com formação técnica para tanto, excluindo do jogo justamente o cidadão eleitor que deveria ser o centro de todo esse processo.

Até mesmo movimentos positivos do sistema jurídico eleitoral acabaram por gerar esse efeito nefasto sobre a democracia.

Tome-se por exemplo a Lei Complementar 135/2010, chamada “Lei da Ficha Limpa”: o diploma colocou ainda mais nas mãos da Justiça escolher quem é ou não apto a ocupar cargos públicos, retirando das mãos do cidadão vultuosa parcela da responsabilidade por suas escolhas mais importantes.

Aqui em Natal mesmo, de onde escrevo, ainda há meses da eleição municipal de 2012, já se trava uma incessante batalha jurídica entre os candidatos em recíprocas tentativas de exclusão de pré-candidatos com apoio da “Ficha Limpa”. Antes de se registrarem os candidatos já saiu de cena o cidadão e entraram os advogados e suas garras afiadas.

Quando se compreende que o Direito é nada menos que contexto é possível ter ainda mais calafrios com esse processo.

Medidas hoje festejadas como vitórias da moralidade, como a fidelidade partidária, cláusula de barreira e até mesmo a “Ficha Limpa” foram outrora instrumentos de exclusão do cenário político de inimigos da ditadura militar instalada em 1964.

E nesse ponto volto ao Jogo das Contas de Vidro.

O protagonista da obra, José Servo (Joseph Knechtno original alemão), é um ávido jogador de avelórios. Em dado momento da obra é eleito Magister Ludi (Mestre do Jogo), autoridade máxima no Jogo de Avelórios.

Ocorre que a formação de Servo foi bem diferente da maioria dos castálicos e jogadores de avelórios. Enquanto estes são afastados de praticamente todas as preocupações mundanas, como economia e política, em nome das ciências do espírito, estando sempre confinados em Castália, Servo viajou por muito tempo de sua formação.

O isolamento dos castálicos, geográfico, social e intelectual, é tanto que a principal escola dos jogadores de avelórios se chama Waldzell, cujo nome pode ser traduzido como Calabouço ou Cela Silvestre.

Servo chega a aprender chinês e meditação e passa boa parte de sua vida como “embaixador” de Castália em um monastério beneditino. Conforme a história progride, Servo começa a entender que Castália e seu Jogo de Avelórios nada mais são que uma torre de marfim de uma comunidade excessivamente protegida. Ele próprio entende que foi enviado para o mundo mundano não para distribuir conhecimento entre os meros “mortais”, mas sim para ele próprio aprender com aquele outro mundo.

Nós, operadores das eleições, temos que ter a mesma reflexão de Servo. Em dado momento, devemos nos afastar e aprender com o verdadeiro professor da democracia: o cidadão.

 

Carta Potiguar

Conselho Editorial

Comments are closed.

Política

#RatonoRatinho: uma Hashtag fascista

Política

Cesar Maia: um exemplo para os novos militantes