Rio Grande do Norte, sábado, 11 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 7 de setembro de 2012

Gostar de ler e gostar de pessoas…

postado por David Rêgo

O bom leitor não é melhor do que ninguém. Ele é apenas mais um viciado em algo. Sua sorte é ter como hobby algo que alguns consideram uma prática “Cult”.

O bom leitor é também um colecionador. Um viciado em ter coisas. Ele lê porque admira seu objeto de desejo. Daí apalpar, acariciar, guardar com cuidado.  Trata-se também de uma terapia. Conheci uma mulher brilhante que colecionava esmaltes. O vício que o “bom leitor” possui por livros, ela o tinha por esmaltes.

Passava horas arrumando-os. Organizando-os em sequências de cores, tons e marcas. Primeiro a marca mais cara, decrescendo até a mais popular.

Depois, perdia mais horas e horas passando os esmaltes nas unhas, admirando ou reprovando suas cores ao observar o contraste que elas causavam com a cor de sua pele. A princípio julgava ser um hobby fútil. Mas era uma pessoa brilhante e culta. Ver alguém arrumando esmaltes me ajudou a crescer. O brilhantismo de alguém não está ligado ao seu hobby, ao que faz em suas horas de lazer, e sim ao tempo que dedica aos estudos e ao “trabalho”.

Disse isso para reforçar a ideia do “gostar de ler”. Quem gosta, sabe que não basta ler. É preciso ter. Não basta saber, é preciso pegar, tocar, sentir o cheiro, cuidar, arrumar e deixar-se apaixonar.

Quando o cara da banca diz: “ei, sua revista chegou!”, isso é algo de lhe fazer abrir um largo sorriso. Ou quando você está esperando um livro pelo correio e o carteiro bate a sua porta/a campainha.

A situação, algumas vezes, é parecida com receber um SMS após ter conhecido alguém interessante e trocado telefones: até que a mensagem seja aberta ou o carteiro lhe confirme a entrega de seu desejo, duas possibilidades pairam no ar, APENAS DUAS: pode ser o que eu quero que seja, ou só outra coisa qualquer. E, quando na mensagem  é de aquele alguém, é o que se queria que fosse, abre-se um largo sorriso. Conseguir um livro raro, que há tempos procurava, também é motivo para alegrar o dia, tal como uma mensagem do alguém interessante.

Na maioria das vezes, as mensagens são só propagandas e o carteiro só traz contas. Uma pena.

É o tempo que você dedica a algo que o torna especial.

Não só isto. Para um estranho que olha a biblioteca pessoal de alguém, todos os livros são iguais. Mas o dono,  aquele que olha a mesma coisa que você, sabe que alguns são mais iguais do que outros. Que alguns lhe cativaram.

A angústia de quem dá conta do sumiço de um livro é semelhante à espera pela pessoa estimada que não chegou no horário esperado como de costume. Você acostuma-se com aquela presença e não declara devidamente seu amor a todo instante (já que se o fizesse seria muito piegas), mas é só “notar”, “dar por falta” e questionar-se onde poderia estar ou pior!, cogitar que poderia tê-lo perdido devido a um ato descuidado, que uma angústia logo lhe aflinge o peito.

Quem tem livros e gosta deles, sente ciúmes, quer que dure para sempre e não quer ver o objeto de desejo “machucado ou maltratado”.

Uma vez, acreditando que livro “tem como função social ser lido”, doei tudo que tinha. Livros e gibis. Acreditava antes que, o bom leitor deve ter também desapego pelos seus livros. Um erro sem tamanho.

Ao analisar melhor diria, inclusive, que o bom leitor já é desapegado. Afinal de contas, quem empresta um livro fica feliz que você o leia e use algo do que ele sente ciúmes, contanto que depois seu objeto volte intacto a suas mãos (o velho lema dos 4 “v”: vai e volta viu, viado!).

Nenhum apaixonado entrega o objeto de sua paixão para outrem e afirma: use e depois me devolva. As pessoas sentem ciúmes dos objetos de suas paixões. Pelo menos nunca ouvi falar de alguém que emprestou a namorada de bom grado dizendo: “na boa, pode usar mas devolve aí depois, só cuidado pra não amassar”. Ok, pode ser até que exista o dito-cujo, mas não é toda esquina que encontra-se um assim.

Entre todas minhas ações até hoje, uma das que mais sinto remorso foi a de ter doado meus gibis e livros justamente para uma biblioteca itinerante. Caso tivesse doado para a biblioteca do bairro pelo menos poderia visitar, olhar, ver, tocar…

Quem gosta, não basta ter consciência da existência do ser amado nem possuí-lo no plano virtual da memória, é preciso, para diminuir a angústia, olhar e admirar, nem que seja de longe.

Assim sendo, é válido afirmar: se alguém deixar de ler um livro para sair com você… sinta-se privilegiado. Ela abandona, por você, o seu principal hobby, o que mais gosta de fazer sozinho em função de um alguém. E isto, já é muito.

* Correção ortográfica: Chrystal Caratta

David Rêgo

Sociólogo, antropólogo e cientista político (UFRN). Professor do ensino médio e superior. Áreas de interesse: Artes marciais, política, movimentos sociais, quadrinhos e tecnologia.

2 Responses

  1. Diego disse:

    Divertidíssimo o texto e ao mesmo tempo verídico, tistis. Tenho certeza que vários leitores, nos seus amores a livros e a pessoas, se verão nele.

  2. thiago gonzaga disse:

    parabéns, ótimo texto.

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