Rio Grande do Norte, domingo, 28 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 31 de julho de 2013

Mercedes Sosa e a geração todinho dançando o arrocha

postado por Carta Potiguar

Por Andréa Monteiro, Socióloga e Professora do IF do Sertão Pernambucano

O carro na estrada. Você injeta o pen-drive e, dentre tantos arquivos, por acaso, Mercedes Sosa começa a cantar. Se hoje os estilos musicais que atraem os mais jovens são o arrocha, axê-music ou pop sertanejo, nas décadas de 1970 e 1980 músicas como as de Mercedes Sosa faziam sucesso. “Duerme negrito” foi uma canção de ninar de muitas crianças, e contém elementos que traduzem o contexto de uma época. Acompanhar essa melodia e olhar as paisagens que margeiam as rodovias do nordeste, numa viagem de automóvel, tanto nos dá uma sensação de serenidade como pode nos levar à constatação das mudanças ocorridas nas últimas 4 décadas nas pequenas cidade do interior do nordeste.

É provável que algum professor de Sociologia, nos últimos dois meses, tenha recebido interrogativas ou cobranças de posicionamento a respeito dos protestos de rua que vem acontecendo desde o início de julho. Bem, professores não são heróis, ao contrário do que se pensa. Professores também são assaltados por dúvidas e questionamentos. Por isso, recorrem a alegorias e devaneios para lidar com as questões que exigem respostas.

A partir de agora, essa leitura será uma viagem em busca de uma interpretação possível sobre os acorridos. O ticket de passagem é acessar o Youtube e ouvir as músicas dos links abaixo, enquanto a leitura é feita.


De quê forma a comparação entre Mercedes Sosa e a dupla Kaio e Bruninho, com a envolvente música “Arrocha que ela gosta” pode nos ajudar compreender, dar um sentido sociológico ou encontrar elementos antropológicos profundos que mobilizam os movimentos sociais que estão acontecendo em todo o país nos últimos meses? Esse será o nosso roteiro. Além de ouvir e dançar, é necessário também o exercício de nossas sensibilidades histórica, antropológica e crítica.

Alguns podem até me acusar de louca por imaginar essa articulação. Mas durante um trajeto por uma das estradas que cortam o sertão nordestino, em uma parada para abastecer e tomar uma Coca-Cola, você pode ouvir a história de Seu Julião. Hoje ele tem 70 anos e, embora aposentado, conduz uma lanchonete em um posto de gasolina. Em 1970, aos 40 anos, era casado e pai de 5 filhos. Morava em uma pequena cidade, era católico e participava das reuniões organizadas pela igreja. Nessas reuniões, segundo ele, falava-se em reforma agrária e em direitos dos trabalhadores rurais. Mas a seca e a fome eram os assuntos dominantes, especialmente no período de 1977 a 1982, quando uma longa estiagem deixou um rastro de vidas e projetos existenciais despedaçados no semiárido.

Seu Julião ia para as reuniões e, como eu agora, devaneava. Embora seus devaneios fossem de outra ordem. Ele sonhava com um “pedaço de terra” que tivesse um poço no qual pudesse assentar na margem um motor para “puxar água” para a família e para a “criação”. Também sonhava, supremo desejo!, com uma ou duas vaquinhas leiteiras. Todas essas informações me foram passadas porque, como baixei os vidros e deixei o som relativamente alto levar a doçura de Mercedes Sosa para a lanchonete, Seu Julião, para o meu espanto, disse que ouvia essas músicas no Salão Paroquial.

Mas do que mesmo falam as letras das músicas de Mercedes Sosa? Terra, comida, trabalho e liberdade de expressão. Essas eram palavras-de-ordem e demandas sociais muito presentes na vida social de todo o nosso continente e foram elementos presentes na cultura popular latino-americana. E, mesmo cantadas em outra língua, deviam inspirar alguém (padre? Agente pastoral? Militante político de esquerda) que atuava na organização de populações rurais e dos “marginalizados” da época. Mas o que era ser marginalizado há quarenta anos? Não ter nem o básico para a alimentação. Para essa população, as palavras contidas nas letras das músicas eram significativas. Essas pessoas tinham disponibilidade para arar a terra, plantar, cuidar de animais domésticos e fazer por elas mesmas o seu destino.

Mas esse mundo foi varrido pelas forças globalizantes que mudaram o mundo nas décadas de 1980 e 1990. Com nomes pomposos, frequentes nos discursos acadêmicos, jornalísticos e políticos, como restruturação produtiva, neoliberalismo, globalização, essas forças moldaram também as expectativas e anseios no território de Seu Julião. Também aí a força do mercado redefiniu sonhos e projetos de vida. No lugar da terra e da vaca, novas necessidades, especialmente para as novas gerações.

Um dos filhos de Seu Julião era um menino estudioso, o que significava ser alvo de chacotas por outros jovens e cobranças de familiares (“esse menino é meio abestalhado, vive com livros, não trabalha e não faz nada direito, é um leso”). Mas, fugindo ao destino de menino sertanejo, ele conseguiu ser aprovado em um vestibular de uma universidade pública da capital. Entrar em uma universidade, ao contrário de hoje em dia quando temos campis espalhados no mundão do sertão, era privilégio restrito a poucos.

Podemos imaginar que o filho de Seu Julião, após o ingresso na Universidade, foi envolvido pelas forças culturais e políticas de seu tempo. O menino leso do interior encontrou reconhecimento, amigos e namoradas na efervescência do movimento estudantil. Transou pela primeira vez, fez política e empunhou bandeiras e gritou palavras de ordens em defesa da liberdade. Liberdade que tanto era política quanto sexual. Viajou com os colegas para encontros estudantis pelo Brasil afora e descobriu um mundo que nem imaginava em suas noites sertanejas. Falava em revolução, mas sua grande participação foi mesmo no movimento pelas eleições diretas para presidente da República. Nunca é demais lembrar que algo tão trivial hoje em dia como ter o direito de votar para Presidente somente foi alcançado pelos brasileiros em 1989. Não é inverossímil pensar que esse jovem do interior que foi morar e estudar na cidade grande estava convicto que era um agente da revolução que estava por vir. Como não?!! Ele lia Karl Marx e outros autores marxistas. No meio do caminho, ele percebeu que não dava para ser revolucionário a vida toda. Teve que arranjar um emprego, depois casou, foi pai e Seu Julião passou a ser chamado de vovô.

Para ele, não era mais necessário o trabalho árduo e cansativo de arar a terra e apostar no tempo e nas intemperes da natureza. Ir ao supermercado, comprar achocolatado em caixinha para o filho, dava ao Filho de Seu Julião a sensação do dever comprido. O seu tempo e a sua força foram subordinadas à lógica produtivista e esvaziada de sentido que passou a reger o mundo do trabalho.

O netinho passou a ser criado em um estilo de vida radicalmente diferente daquele do seu pai e seu avô. Ele não precisava levantar ao raiar do dia, ajudar nos cuidados da casa e com o pai e a mãe trabalhando garantia ao menino frequentar uma escola melhor, comprar o vídeo game Atari para jogar Enduro, River Rider, Pac Man. Enquanto o neto ficava tomando toddynho em frente à TV ou se excitando com os jogos eletrônicos imaginava a hora de dirigir um carro, ou voar de avião. O que ele devia provar para os pais era que estudava, tirava boas notas para, no futuro, ser melhor que o seu pai.

Pela TV, o neto de Seu Julião assistiu impressionado a uma multidão dos jovens de sua época, bem mais velhos que ele, saírem de casa e irem para as ruas protestar contra a administração do governo da época. As imagens provocaram uma sensação de potência no neto de Seu Julião. Como ele, a multidão de jovens já não tinha a expressão corporal sofrida da geração do avô. Criados à base de caixas e mais caixas de todyynho, eles chegaram à juventude com alta estatura, fortes e convencidos que faziam partes dos Thunrcats, ou que eram o exercito de Super Amigos e mudariam o Brasil. Esse exército, querendo fazer diferente, escolheu a identidade de “Os Caras Pintadas”. Depois que a onda passou, mesmo com o esforço do exercito de heróis, o presidente da época, Fernando Collor de Melo foi deposto, mas as políticas neoliberais foram implementadas. Tal qual o filho de Seu Julião, a geração cara pintada quis mudar o mundo, mas também desejavam arrumar suas vidinhas. Tiveram que ir trabalhar, casaram e tinham o sonho de ter uma casa bem, mas bem bonita. Equiparam a casa e compraram um equipamento chamado computador domésticos, cuja presença e uso prenunciavam a chegada de uma nova era. Seus filhos ou irmão mais novos nasceram na era da informação. Em princípio, a rede de computadores foi concebida para acelerar as informações e transações comerciais entre bancos e as grandes empresas, em um segundo momento, o mesmo sistema foi redefinido e passou a incluir a comunicação de pessoas comuns. Assim, emergiram novas e sedutoras mercadorias imateriais.

Comida não é mais problema. A massificação da produção de alimentos controlados pelas grandes indústrias e a ampliação do crédito solucionou esse problema. A pizza, o leite de caixinha e o hambúrguer, consumidos hoje, serão pagos no próximo mês. Para os mais pobres, o governo atuou com através de políticas compensatórias, garantindo-lhes uma renda mínima, frequentemente gasta com comida e artigos chineses; roupas, tênis, celulares. Os caras pintadas envelheceram e hoje se esforçam para pagar o financiamento da pick-up e a fatura do cartão de crédito com as despesas das viagens pela Europa.

A vida segue. Você gira a chave na ignição, acelera e entra na estrada. A paisagem onde predominava o tom de verde das culturas de subsistência foi tomada por uma outra, multicolorida. Multiplicaram os mercadinhos, onde além das compras lhe é oferecido também um cartão de crédito. As academias, salões de beleza, pequenas lojas de roupas de plástico, bibelôs e os mais variados artigos eletrônicos Made in China cintilam aos olhos. O mundo ficou mais dinâmico, rápido, movimentado, agitado e denso. O posto telefônico foi transformado em unidades celulares. O rádio foi substituído pelas antenas parabólicas, os animais foram substituídos pelos motores de carros e motos. Nesse cenário de mudanças, nas pequenas cidades, o símbolo de distinção de muitos jovens é um sorriso metalizado, um celular e uma moto cinquentinha.

Os rapazes do movimento estudantil fizeram sua parte, os caras pintadas também e os jovens de hoje também querem fazer a sua. Não existe mais diferença se estão em Petrolina, Natal ou São Paulo. Ligados em algum ponto do tempo e do espaço pela rede de comunicação intergaláctica, ops! virtual, eles são arregimentados aos milhares.
Um dos aspectos mais interessantes dos protestos de rua que vem ocorrendo no Brasil ultimamente é o próprio espanto em relação ao número de participantes. Ninguém esperava mais tal quantidade de pessoas nas ruas protestando por ou contra algo. Afinal, não estávamos avançando? Nos últimos anos, o sistema de ensino tem sido repensado pela gestão pública e, de alguma forma, se tornado minimamente inclusivo. Essa inclusão coincidiu com o fato de o Brasil ter se tornado um território de exploração a ser colonizado pelo capitalismo na sua fase globalizada. Como estratégia de preparar a população para um projeto de médio prazo, o governo amplia número de vaga nas universidades, no ensino médio e na educação da primeira infância. Afinal, quem vai ficar com as crianças pequenas se seus pais e mães estão obrigados a contribuir/participar, mesmo contra a vontade, do novo ciclo de expansão do capitalismo alicerçado no consumismo hedonista?

Onde estavam esses jovens? Como tem sido a vida dessas pessoas? O que subjaz aos seus comportamentos nas ruas? O que eles estão querendo dizer? Que mundo social é o deles? Não é aquele de Seu Julião e nem o de seu filho, com certeza. Indagar sobre esse mundo pode nos levar a entender não apenas onde eles estavam e estão, mas também os seus dramas, desafios e potências.

Eles são os filhos de um mundo no qual as próprias necessidades foram redefinidas. Não que não se procure, como durante quase toda a história humana, comer, beber e se vestir. Mas é que essas coisas básicas agora estão envolvidas, como quase tudo na existência individual contemporânea, pela necessidade de reconhecimento. Esse reconhecimento, base de nossa identidade, não é mais alcançado no mundo do trabalho, e cada vez menos no espaço familiar. As necessidades humanas fundamentais estão sendo respondidas nas e pelas redes sociais. O Facebook é o exemplo de rede social mais fácil. O mundo que emerge no Facebook é uma espécie de portal mágico. Basta criar uma página, alimentá-la com “o que estás pensando” e ficar conectado. O tempo do “face” também é outro. É o tempo de esperar… Esperar e esperar que um som nos diga se estamos sendo vistos, admirados ou espionados.

Quando se constróe um espaço onde o tema é você mesmo, cada um de nós passa a viver o centrado em si. Adentrar esse portal mágico e viver essa outra medida de tempo provoca o suprimento dos deveres relacionados aos papéis sociais básicos. Você passa tanto tempo no Facebook que esquece: do pai, da mãe, dos projetos de futuro, dos deveres escolares, dos vizinhos e de todos que estão “aqui fora”. Os toques, curtidas e contemplações de paginas funcionam como alimentos da alma. E, mais do que reconhecimento, encontramos no Facebook a felicidade fugidia que já não conseguimos/encontramos mais nas nossas interações face a face.

Mas as dores humanas radicais não foram curadas. Em algum momento, o tédio virtual adentra e se apossa da alma. Precisa-se de mais. De mais reconhecimento e mais vida. Essa vida não está nos espaços públicos, pois os mesmos foram abandonados ou tratados sadicamente pelos gestores locais. Restam os shoppings, bares, festas e noitadas em postos de gasolina nas pequenas e médias cidades. Nessas paisagens, o som do arrocha, que remete a um corpo que dança, é visto e desejado, e também idealizado por meninos e meninas, sacia momentaneamente a necessidade de ser amado. E tudo isso é pago e organizado em torno de estruturas que transformam necessidades e desejos em mercadorias.

A verdade é que pesam mais fortemente sobre os jovens os sofrimentos de vivermos em uma sociedade na qual o consumo se tornou o centro do mundo. Um consumo que coloniza as nossas potencialidades não apenas de hoje, mas de amanhã e de depois. Não temos dinheiro hoje para comprar aquela calça ou mesmo nos alimentarmos do prato que desejamos? Joguemos tudo no cartão de crédito. E o se o cartão de crédito estoura, restam os empréstimos bancários. No Brasil, nas ultimas décadas, fomos educados e acostumados a viver endividados, porque nunca temos e ganhamos o suficiente. O problema é que nem todo esse comprometimento (da sensibilidade, da renda e de futuro) nos traz a satisfação que bancos e grandes empresas nos prometem. Algo está errado, não sabemos exatamente o quê ou de onde vem esse “erro” que nos atemoriza. E também nos revolta. Por isso, a busca pelos espaços das terapias é cada vez mais crescente. É na hora da lucidez que percebemo-nos como Pinóquio, o menino narigudo hedonista, que a partir do momento em que começou a mentir para si mesmo se transformou num marionete de seus desejos. Uma outra parte deles, quem sabe, aqueles cujo sentido prático seja mais aguçado, percebendo que aquilo que lhes falta pode ser preenchido pelo acolhimento de alguma religião, lotam as templos e espaços do sagrado.

O poder, assim como o Mal, nunca está exatamente onde achamos que ele se encontra. A sua força atual reside em nos tornar reféns de um sentimento de insatisfação que nos assola. Olhamos no espelho e não gostamos do que vemos. O peso está errado, o cabelo, o nariz, nossa cor… Parece até que nascemos na família errada, estado errado, no país errado. Sim! Claro que queremos ser pessoas melhores. E é justamente essa vontade que o consumo coloniza ao nos fazer crer que, logo ali, após dobrarmos a esquina, a felicidade nos abraçará pelo resto de nossos dias. No entanto, como a nossa bússola pessoal está dominada pela satisfação do EU, não nos damos conta da miséria espiritual que nos envolve. Cada vez distanciados do contato complicado com outros humanos, estamos mais intolerantes, estúpidos e embrutecidos. E esquecemos as pessoas de carne e osso que dividem os espaços físicos por onde transitamos. Esse novo processo socializador apaga da nossa consciência a ideia básica de que são essas interações, prazerosas, mas também (e ainda bem!) conflitantes, que geram laços sociais e que fornecem as ligas para a vida em sociedade.

Um sintoma lateja no mundo mágico do Fecebook e fora dele. Nos últimos dias uma data foi fortemente alimentada pelas postagens de um número considerável dos que fazem parte do “face”: o dia do amigo. Isso demostra que os nossos jovens ainda acreditam nessa relação social. E é justamente partindo desta relação que milhares e milhares de jovens sentem-se engajados e se comprometem a um determinado fim: protestar nas ruas.

Quem sabe uma atitude radical que pode abalar o poder desse sistema que nos massacra não esteja em perder tempo? Aliás, se tempo é dinheiro e o nosso tempo está sendo controlado por forças além de nós, vamos perder tempo. Perca tempo! Perca tempo com os amigos e as amizades. Fora da tela, do virtual. E aí, mais do que #vemprarua, talvez possamos gritar VEM PRÁ VIDA!… Bruta, feia, complicada, majestosa e bela, mas sempre vida. Nela, Mercedes Sosa e o Arrocha se entrelaçam porque “se a vida é amiga da arte”, a grande arte, hoje, é resgatar com arte a vida que ainda pulsa em todos nós. Talvez seja essa a maior lição que os jovens que foram às ruas nos deram.

Carta Potiguar

Conselho Editorial

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