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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 16 de maio de 2014

A entrevista de Ney Matogrosso e a crise da democracia representativa

postado por Carta Potiguar

UMA VEZ FLAMENGO, SEMPRE FLAMENGO: A DOMINÂNCIA DA MENTALIDADE DE TORCIDA ORGANIZADA NO DEBATE SOBRE A POLÊMICA ENTREVISTA DE NEY MATOGROSSO.

Por Vantiê Clínio (Cientista Político, Doutor em Ciências Sociais – UFRN e Anarquista)

Para tratar do assunto anunciado no título, tomarei aqui apenas um caso, bastante representativo de boa parte das posturas assumidas pelos defensores do governo federal, no debate público desencadeado pela entrevista em pauta.

repSegundo se diz, Ney Matogrosso teria recebido uma carta de um músico brasileiro, (supostamente, um dos maiores bateristas do Brasil: sempre me surpreendo com esses títulos, pois, num país com essa dimensão, será possível conhecer todos os bateristas para poder avaliar assim?!), cujo conteúdo segue a seguinte linha de raciocínio: “Há uma verdadeira campanha contra o Brasil na mídia alemã e europeia, que atinge jornais, revistas, rádio e TV. Há campanhas sistemáticas na internet. Parte da campanha a mais ideológica, é contra o governo Dilma, contra Lula e o PT. Parte dela é contra o Brasil mesmo, o país em que nada funciona, tudo é precário, campeão da corrupção, da violência, homofóbico, cujo governo não tem preocupação pelo meio ambiente, país apenas da miséria e pobreza, favelas e cortiços, país que é um fracasso de qualquer ponto de vista que se olhe, até do futebol… É claro que para o lado mais politizado da campanha – que não precisa de conspiração, bastando apenas orquestração – qualquer referência ao Brasil de hoje, incluindo a Copa, tem na verdade por alvo o Brasil de Outubro, para ajudar a desacreditar o governo de Dilma Rousseff e favorecer a oposição, seja ela qual for…”

No debate na internet – com alguns músicos, claro – em que essa notícia foi veiculada, chegou-se a fazer alusão ao passado recente das ditaduras na América Latina! Então, respondi:

Essa conversa de acenar com o espantalho das ditaduras clássicas para colocar medo e afirmar que a melhor saída é esse sistema democracia_representativaque aí está, está completamente defasada! O que verificamos, na verdade, é que estas tais democracias representativas nada mais são do que “DEMOCRADURAS”: democracias apenas formais e “ritualísticas” – onde os cidadãos exercitam os rituais formais de votar de tempos em tempos e depois são alienados de qualquer poder de determinação sobre os “negócios públicos”. Isso não passa de uma estratégia mais sofisticada dos grupos dominantes – mais sofisticada em relação à adoção de ditaduras clássicas porque nestas o autoritarismo é evidente, enquanto nas “democraduras”, nem tanto -, para manter os povos na ilusão de que têm algum poder de decisão, quando, na prática, este poder está concentrado nas mãos de pequenos grupos de interesse (geralmente, redes de interesses de grandes grupos econômicos e políticos partidários).

Não é “por acaso” que uma pesquisa recente realizada pela organização “Transparência Internacional”, cujos resultados foram divulgados em Julho de 2013, verificou que, em boa parte dos países “democráticos”, desde a Europa até às Américas, há uma tendência crescente por parte das populações a não acreditar mais nos poderes públicos (judiciário, polícias, legislativos, executivos, sistemas de saúde), por compreenderem que todas estas instituições “democráticas” servem apenas a interesses de grupos “específicos” (podemos dizer também, “especiais”)!

Não é “por acaso”, também, que a maioria dos movimentos de protestos que vem tomando vários países, no mundo inteiro (num novo ciclo internacional de lutas anticapitalistas que se abriu neste momento histórico), vem assumindo a proposta e a forma organizativa da democracia direta!

Não é “por acaso”, ainda, que a curva que registra o comportamento dos eleitores em boa parte dos países “democráticos”, registra uma tendência ao crescimento dos índices de abstenção, bem como de votos nulos e/ou em branco (inclusive no Brasil)!

Portanto, verifica-se uma tendência ao crescimento da percepção de que, no fundo (digamos, no essencial), não existem muitas diferenças entre eleger partido A, B ou C, visto que todos jogam o jogo da manutenção deste sistema que alija as pessoas do seu real poder de decisão, além da maioria deles coincidir – no essencial, volto a dizer – na adoção de agendas políticas e econômicas de interesse dos grandes grupos de pressão, o que, em geral, é antagônico aos interesses “dos de baixo”: vide, no Brasil, a expulsão de comunidades pobres dos entornos dos lugares onde serão construídos estádios para a Copa, a expulsão de comunidades tradicionais do Rio Xingu e a agressão ao meio ambiente promovidas pelo projeto de construção da Usina de Belo Monte, o projeto de privatização dos hospitais universitários, a Lei Antiterrorismo que criminaliza os protestos sociais, etc.! Então, nada do que está sendo dito no exterior, sobre a gravidade da situação por que passam os mais pobres no Brasil, bem como sobre o crescimento dos “descontentamentos” com a política eleitoral em geral, é “invenção”!

Só discorda deste quadro, quem enxerga a realidade apenas através dos discursos e dos dados estatísticos oficiais (aliás, estatística é a ciência segundo a qual, se eu e você temos dois pedaços de bolo, e você come os dois, os dados demonstram que somos dois comedores de bolo)! Só discorda deste quadro, quem vive na flauta ou na batucada da melodia hipnótica dos mantras oficiais! Quem vive nas favelas “pacificadas” (como a da Maré, de onde um grande número de moradores foram expulsos pelo projeto de gentrificação atrelado à “pacificação”), quem vive na Região do Rio Xingu (onde as pessoas que se negam a sair veem suas casas serem incendiadas, suas lideranças serem violentadas e suas jovens serem aliciadas para a prostituição), quem vive em áreas indígenas (como era a da Aldeia Maracanã – destruída em benefício do “Padrão FIFA” e como as terras dos Guaranis Kaiwoás), quem vive entre os sem terras (o número de desapropriações de terras caiu substancialmente na última década), quem vive entre os sem teto (o número de pessoas jogadas às ruas cresceu vertiginosamente com as desapropriações para a Copa), enfim, quem vive e enxerga para além de algumas “cotas” e pequenos percentuais de “assistidos” pelas bolsas simbólicas, sabe que a melodia vendida pelo governo no exterior – não apenas com sopro, cordas e batucada, mas também com futebol e exploração da imagem dos corpos de mulheres brasileiras – é um produto “falseado” e que a informação “padrão crítica” – em contraposição à “padrão FIFA” -, vem daqueles que não vivem embriagados pela música dos programas e discursos oficiais (para não falar da “acomodação” com seus salários de pequenos empregados e financiamentos via editais)!

O que se verifica no mundo hoje é, claramente, uma tendência ao crescimento da adesão às críticas e às formas de luta tradicionalmente encarnadas pelos anarquistas: a descrença quanto à democracia representativa e o apoio às propostas e práticas de democracia direta! Vide o mais popular slogan das Revoltas argentinas em 2001: “Que se Vayam Todos!” (“Fora Todos os Políticos!”) e o da Revolta dos Indignados na Espanha, em 2011 (“Democracia Real Já”, uma alusão à democracia direta), entre outros.

Trarei para o debate, Max Stirner: Não existe nada mais limitado do que um pretenso crítico movido pelas ideias e discursos difundidos em escolas oficiais – inclusive, as escolas dos partidos!

E, para arrematar, uma sentença inspirada em Hegel: Não adianta querer “salvar” qualquer partido que seja, quando “O Espírito do Tempo” (Zeitgeist) aponta para o arruinamento deste expediente moderno de manipulação e dominação política e econômica!!

Carta Potiguar

Conselho Editorial

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