Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 1 de agosto de 2015

Virada gramatical tenta curar tiro no pé da grande mídia

postado por Wilson Ferreira

Depois de décadas de jornalismo adversativo onde dominavam conjunções como “mas”, “porém”, “contudo” etc. para minimizar impactos negativos e, com os governos petistas como oponentes, inverter o sinal e as adversativas minimizarem impactos positivos, a grande mídia dá uma virada gramatical: adjuntos adverbiais de concessão como “apesar da crise, indústria cresce…” ou “mesmo com a crise, setor de informática vende mais…” passam a se repetir ao ponto de tornarem-se bordões ridicularizados em redes sociais. Por que essa virada gramatical? Depois de 12 anos em uma cavalgada suicida querendo provar que o País está no abismo econômico detonando bombas semióticas da crise autorrealizável, a grande mídia chegou ao limite: a presunção da catástrofe volta-se contra ela própria, com queda de audiência e anunciantes. Depois do tiro no pé a grande mídia parece tentar sinalizar ao mercado: “apesar da crise, anuncie aqui!”.

Lá pelo final do século passado, em plena crise do Plano Real com as maxidesvalorizações logo depois da reeleição presidencial de Fernando Henrique Cardoso, um helicóptero da TV Globo sobrevoava os pátios lotados de veículos das montadoras da região do ABC paulista. A voz ao vivo do repórter aéreo falava em pátios lotados, crise e férias coletivas. Corta para o estúdio. E o apresentador Chico Pinheiro contemporizou: “Mas quem ganhará é o consumidor com os descontos que as concessionárias oferecerão…”.

Essa era ainda a época do jornalismo adversativo. Embora o jornalismo sempre tenha vivido da presunção da catástrofe (o acidente, o bizarro e o endêmico prendem a atenção do espectador), a utilização das conjunções coordenadas adversativas (mas, porém, contudo, todavia etc.) sempre tiveram duas funções primordiais.

Primeiro, a função existencial – relativizar ou minimizar o impacto negativo é a sua função comercial de entretenimento. Afinal, não importa se as notícias são boas ou ruins. No todo, seja o jornalismo televisivo ou impresso, deve ser uma experiência visual, gráfica e informativa agradável.

Anunciantes não querem associar subliminarmente suas marcas e serviços a experiências desagradáveis. Por exemplo, no dia dos atentados de 11 de setembro de 2001 as redes de TV dos EUA tiveram um prejuízo de US$ 200 milhões com a suspensão de inserções publicitárias. Um ano depois, ao fazer reportagens especiais em horário nobre sobre o evento, a FOX News teve mais prejuízos: anunciantes ficaram relutantes em associar suas marcas à lembrança de um evento tão negativo.

Segundo, a função política – desde a ditadura militar, a grande imprensa tentava conciliar a sua função informativa com a adesão às políticas dos governos militares e, mais tarde, o apoio e confiança irrestrita ao Plano Real. Inflação aumentou? Mas em termos relativos diminuiu comparando-se com o mesmo período do ano anterior… O desemprego cresceu? Porém, é a oportunidade de criar seu próprio negócio… 

Marteladas adversativas

Conjunções coordenadas (aditivas, adversativas, conclusivas, explicativas etc.) sempre foram retoricamente interessantes para o jornalismo: conciliavam interesses muitas vezes contraditórios (publicitários e políticos), além de criarem uma percepção aos leitores/espectadores de um jornalismo articulado, explicativo ou investigativo. Parece haver isenção ao mostrar um pretenso “outro lado”. Ao contrários das conjunções subordinadas (causa, comparativa etc.), suspeitas de intenções ideológicas ao tentarem criar subordinações entre afirmações – porque, do que, mais, contanto etc.

A partir de 2003 e início da era dos governos petistas Lula e Dilma, a grande mídia manteve esse traquejo adversativo, mas agora com o sinal trocado: deve-se agora relativizar e minimizar o impacto positivo – O PIB cresceu? Mas o desemprego aumentou. A economia está aquecida? Entretanto, o “gargalo estrutural” não vai permitir escoar a produção…

Foram 12 anos de marteladas adversativas, até chegar a um ponto onde as duas funções dessa conjunção gramatical (existencial e política) começaram a entrar em choque: de um lado, a experiência do jornalismo como infotenimento começou a perder o seu lado do “entretenimento” – a experiência para o leitor/espectador tornou-se cada vez mais desagradável, alarmista, baixo astral com alusões recorrentes de abismos, crises, precipícios, buracos e quedas.

E do outro, a condição que a grande mídia passou a se auto-investir de ser a única opção viável de oposição ao Governo Federal, pautando as ações da oposição política e parlamentar. 

A crise autorrealizável

Após a transformação diuturna de cada trepidação da Bolsa, de cada variação sazonal de preços de hortaliças e legumes (os vilões tomate e cebola, por exemplo) ou de cada flutuação do câmbio em sintomas de uma presumível catástrofe, finalmente explodiu a bomba semiótica da crise econômica autorrealizável. 

A crise econômica autorrealizável lembra bastante a chamada inflação psicológica da hiperinflação brasileira dos anos 80-90 – por ter medo da inflação e na tentativa de se prevenir contra uma catástrofe futura, consumidores, indústria e comércio adotavam ações que colaboravam para a expansão da própria inflação.

Com a inversão dos sinais, o diapasão do discurso adversativo finalmente criou a percepção (paradoxalmente em todo espectro político) de que a crise econômica chegou, a corrupção é endêmica e o País caiu no abismo. Mas como coloca de forma simples e irônica a charge de Duke (publicada no jornal O Tempo de Minas Gerais – veja abaixo) sobre essa dinâmica psicológica da crise, a vitória da grande mídia pode ser um tiro no próprio pé – ou a chamada “vitória de Pirro”. 

“Apesar da crise…”

A começar, a contradição entre a função existencial e política: assistir a um telejornal tornou-se desagradável e chato, produzindo medo e ansiedade. Por isso, somada a ameaça das mídias de convergência (por exemplo, a Reuters lançou um canal de vídeos cujo slogan é: “o canal de notícias para quem não vê mais TV”), despencam as audiências dos telejornais, repercutindo nas telenovelas e todo o horário nobre. Os patrocinadores ameaçam debandar ou querem negociar preços mais baixos de inserção: afinal, todos sabem, estamos em crise…

Em desespero, a mídia vem nos últimos meses abandonando as conjunções adversativas como bem percebeu Pablo Villaça, que em seu Facebook ironizou o abuso da expressão “apesar da crise” pela imprensa – clique aqui. Villaça fala que se a grande mídia não utilizasse essa expressão, ela não teria mais o que publicar, já que os fatos econômicos insistem em contradizer as previsões dos colunistas.

“Apesar da crise, porto de Santos bate recorde de movimento no primeiro semestre de 2015”, informou a TV Tribuna de Santos nessa semana ou “Apesar da crise, a indústria está otimista com as venda na Páscoa”, informou o portal de O Globo. São amostras recentes desse repentino apego ao adjunto adverbial de concessão, abandonando as conjunções adversativas.

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Wilson Ferreira

Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi/São Paulo na área de Estudos da Semiótica. Pesquisador CNPQ do grupo de pesquisas "Cinema e Sagrado no Cinema e Audiovisual e autor dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus. Editor do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" sobre confluências entre Gnosticismo e Sagrado no Cinema, Audiovisual e Cultura Pop em geral.

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