Rio Grande do Norte, domingo, 28 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 12 de agosto de 2015

Africanos, religiões, humor, imigrantes, o universo e tudo mais

postado por David Rêgo

1 – Macacos que fazem humor com macacos

“As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco”. (A revolução dos Bichos – George Orwell)

Os Simpsons na África? Não. Os Simpsons no Brasil.

Os Simpsons na África? Não. Os Simpsons no Brasil.

No ano de 2002 o povo Brasileiro revoltou-se com o seriado “Os Simpsons”. Costumamos rir das gozações feitas com o povo norte-americano. Nos divertimos com os esteriótipos. Mas foi só o mesmo ser feito com o Brasil que vimos muitos tupiniquins furiosos. Criar um episódio que retratava o país em forma de selva, com macacos andando pelas ruas foi algo ofensivo para muitos. É a visão estereotipada “dos gringos” sobre a selva Brasil. Costumamos chamá-los de ignorantes por isto.
E quando ocorre o inverso? Quando é o humor brasileiro dizendo que outros povos vivem em selvas ou comportam-se como macacos. Chamaremos a nós mesmos de ignorantes e que tudo vale em nome do humor (audiência)? É a velha ação do “dono da bola”. O jogo só é bom enquanto se vence. O chiste é bom, desde que não seja com você. Fazer humor depreciativo com africanos ou afrodescendentes, denegrindo suas culturas ou religiões é dar um tiro no próprio pé. Neonazistas do jardim de infância sabem que não existem diferenças entre brasileiros e africanos, afinal, somos todos macacos. Descreveriam o atual comento como: “Macacos que fazem humor com macacos/ Macacos rindo de outros macacos por serem macacos”.

2 – Racismo 7 x 1 Brasil

Atletas da Ginástica envolvidos em episódio de Racismo.

Atletas da Ginástica envolvidos em episódio de Racismo.

No final de Maio atletas da seleção de ginástica foram afastados após vídeo com conteúdo racista. Eles alegaram que tinha sido só uma brincadeira. Um mês depois, no início de Julho, a “menina do tempo” (Maria Julia Coutinho) foi agredida com uma série de “brincadeiras de conteúdo racista”. E agora, também pouco mais de um mês depois do episódio da “menina do tempo”, um novo desconforto é gerado com o mesmo tema: o racismo. Mas desta vez o tema tomou proporções internacionais.

Circulam na internet  vídeos com momentos do personagem “O Africano”, novidade do programa Pânico. “Le brésil un Pays Raciste? Questiona um dos vídeos. Nos comentários é possível observar que a comunidade internacional nos coloca como um país racista. Muitos brasileiros espantam-se e revoltam-se com os comentários.

O Africano interpretado por Eduardo Sterblitch. O talentoso humorista parece que deu uma fora.

O Africano interpretado por Eduardo Sterblitch. O talentoso humorista parece que deu uma fora.

Para o brasileiro “comum” não existe racismo aqui. Isso é coisa de norte-americano ou Alemão. Não aqui. Alguns afirmariam ainda que temos um “racismo velado”. Aliás, o próprio pessoal do Pânico já desculpou-se. Em nota de defesa o programa afirmou que “também satiriza ‘mexicanos, chineses e árabes”. Guardando as devidas proporções, o argumento de defesa lembrou o caso do Índio Galdino, queimado vivo em Brasília na década de 90. Na época, em sua defesa, um dos adolescentes afirmou que “pensava que ele era um mendigo”. A lógica utilizada pelo Pânico para defender-se é semelhante.

O racismo no Brasil (tal como outros preconceitos) não busca esconder-se ou dissimular-se. Ele é explicito, diário, e justamente por isto “naturalizado”, tido como normal e cotidiano. Mas não é muito difícil desconstruir esse “racismo naturalizado”.

3 – As origens do mal – a educação autoritária

Somos ainda uma nação autoritária. Uma nação nova e multiétnica que consegue fazer com que seu povo tenha em quase 80% sua preferência pelo cristianismo, na religião, e o futebol, no esporte. Um feito deste porte só se mantem com atos autoritários. Seria impossível que entre tantas religiões, 80% das pessoas escolhessem a mesma matriz. Seria um fato surpreendente se, de tantos esportes existentes, 80% das pessoas escolhessem apenas um como favorito. O fato de tão pouca diversidade deve-se justamente à pressão que recebemos para optar por estas escolhas e não outras.
Mesmo que você não queira será carregado para a igreja. Mesmo aos prantos você irá. É normal ouvir o choro das crianças ali, são forçadas a acreditar em uma doutrina desde a mais tenra idade sob a pena de queimar para sempre no inferno. É assim que costumamos fazer para que nossas crianças acreditem nas nossas doutrinas. O mesmo com o futebol. Você não pode escolher assistir outras coisas em TV aberta Brasileira. Automobilismo e Vôlei? Só nas manhãs de Domingo. Campeonato estadual de vôlei transmitido pela TV? Basquete? Ciclismo? Muito pouco. Atletismo? Uma vez ao ano na São Silvestre. Diariamente só nos deixam ver futebol. Os outros esportes? Só em época de Panamericano ou Olimpíadas.

O mesmo vale para as piadas com outros povos. Quantos personagens de grande destaque existem, no Brasil, que fazem deliberadamente humor depreciativo com matrizes culturais europeias? O humor com as outras religiões é sempre engraçado e presente. Desde Chico Anysio com “Painho” até “O Africano” com Eduardo Sterblitch. O que não se pode fazer é humor com Jesus. O mais brando humor com o Deus Europeu é o suficiente para os mais diversos constrangimentos. O pessoal do “Porta dos fundos” sentiu na pele o que acontece com aqueles que fazem humor com “O Deus verdadeiro”. Ameaças, processos judiciais entre outras coisas de deus. Aliás, qualquer tentativa de ridicularizar o messias que os imigrantes europeus trouxeram é fortemente reprimida. Tente e Eduardo Cunha, o paladino da justiça, em breve o processará por Cristofobia.

As regras do jogo deveriam ser iguais para todos. Mas não jogamos assim. A regra da liberdade de expressão só é válida quando somos maioria numérica ou elite econômica. Aqueles que não pertencem a nenhum destes grupos, precisam acostumar-se a ouvir piadas o tempo inteiro, nunca revidar, responder ou indignar-se. Deve-se ter todo cuidado para não violar as crenças impostas, mesmo que os demais passem o dia fazendo piadas com as crenças (com o que é sagrado) ou valores de outros grupos.

Uma educação autoritária gera indivíduos etnocêntricos.

4 – A frágil democracia

O caminho para estabelecer uma sociedade democrática ainda tem muitas pedras. Vivemos em uma frágil democracia. Que ainda engatinha e tentar legitimar-se a partir do sufrágio universal, deixando em segundo plano aquilo que seria a virtude máxima dos regimes democráticos. O valor máximo da democracia não é a vontade da maioria expressa pelo voto. O valor máximo da democracia é a convivência com a diferença e minorias, concedendo a todo indivíduo da espécime humana direitos que valem para todos, independente de condição econômica, etnia, sexo, gênero ou religião. Este é o grande ganho. O voto é a menor parte.

Para aqueles que acham que o Brasil é um país democrático por ir às urnas a cada 2 anos, temos uma má notícia: “sabe de nada, inocente”.

 

David Rêgo

Sociólogo, antropólogo e cientista político (UFRN). Professor do ensino médio e superior. Áreas de interesse: Artes marciais, política, movimentos sociais, quadrinhos e tecnologia.

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