Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 3 de novembro de 2015

Feminismo: quando há ainda mais gente lutando contra

postado por Beatriz Madruga

Eu ia passando pela mesma rua dia sim, dia não, a caminho do curso do inglês, e dia sim, dia não, o porteiro do prédio na rua Seridó me assobiava. Me elogiava (?). Me chamava. E dizia um boa tarde que de educado não tinha nada. Eu tinha doze anos.

Eu atravesso a rua pra ir até o self-service, e minha rua, agora inundada por pastoradores de carro, também vem sendo inundada por assobios, elogios, cumprimentos que de educados não têm nada, absolutamente nada.

Eu estava dentro do carro quando havia dois homens no canteiro central. Rua Potengi. Um deles abaixou-se até uma lata, e eu achei que ele estava vomitando do meu lado. Virei o rosto pra olhar, até preocupada, meio assustada. Ele teve certeza que, ao fazer isso, eu demonstrava interesses imediatos nele, e assim começou a gritar, a sorrir, dar gargalhadas, bater no meu vidro e tentar abrir a porta do meu carro. Me “chamava”, além de usar outros vocativos que não preciso listar aqui. Era meio-dia, meses atrás.

Quando eu ando pelas mesmas ruas, no horário que for, no dia que for, acompanhada de um homem (o homem que for), nada disso acontece. Quando eu estou dirigindo, e tenho um homem no banco do meu passageiro, nada disso jamais vai acontecer. Nunca aconteceu. E a gente sabe muito bem por quê.

Eu tinha doze anos quando comecei a ser assediada nas ruas do meu bairro, do bairro do meu colégio, ou de qualquer cidade onde eu estivesse. Eu tenho vinte e cinco anos e isso se mantém. Eu tinha doze anos quando comecei a me incomodar com isso, e agora, aos vinte e cinco, eu parei de me incomodar e passei a sentir desprezo, raiva, fúria – sem sensacionalismo. Dos homens que assediam, que “elogiam”, que me dizem boa tarde em melodia e olham para determinadas partes do meu corpo. Mas a maior fúria tenho de quem faz o desfavor de lutar contra tudo isso.

É 2015 e é preciso brigar a favor do feminismo. É preciso brigar para que parem não somente o assédio e a desigualdade de gênero, mas o deboche. A prova do Enem parece ter feito um grande favor à causa, na última semana. Mas, na minha timeline, nos meus grupos virtuais, nas mesas dos bares (quase nunca vou a bares, mas faz de conta que vou com frequência) o feminismo virou o deboche, a piada de mal gosto, e um grande desprezo. Como se não precisássemos disso, como se feminismo fosse sinônimo de uma histeria sem propósito e sem limites. Como se o feminismo se restringisse a estereótipos visuais, que, sinceramente, eu nunca nem encontrei por aí – minhas amigas e amigos feministas transitam em todos os estereótipos possíveis, exceto o que os debochadores têm usado como alvo.

Como se não bastasse a luta contra o estupro, o assédio sexual e moral, contra o argumento sobre o tamanho da nossa roupa, em pleno século vinte e um temos de lutar contra pessoas que além de machistas têm, por hábito, serem estúpidos. A cada vez que levantamos a bandeira e encaramos um assédio nas ruas, retrocedemos várias casas no tabuleiro com um meme que nunca é inteligente e, ao contrário de engraçado, é bastante desgraçado em sua piada anti-feminismo. Sem que eu compreenda, essa piada quase sempre parte de alguém de classe média ou alta, alguém letrado, atual estudante de Ensino Superior, ou que já tenha saído dele. Sem que eu compreenda, a piada parte de quem, teoricamente, estudou, leu, se informou pela vida inteira, e de quem pressuponha que se tenha um mínimo de senso crítico (aquele eufemismo para inteligência).

A urgência, agora, passa a ser a de que mais mulheres lutem com a gente. Mais homens também. É preciso gritar todos os dias, desfazer a pouca graça da piada veiculada sem propósito, cheia de preconceito e burrice. A luta, também, é combater a burrice machista, tanto quanto suas práticas. Se pararmos de responder ao assédio sem respeito, e também ao amigo (?) que faz a piada com nossa causa infelizmente atual, estamos perdendo a mesma guerra. Essa guerra que um dos lados declara e o outro debocha. Um lado se esforça e o outro destrói.

Não sei até que ponto o diálogo nos serve. É preciso gritar todo dia um pouco, eu acredito nisso; contra as mãos e as cabeças que têm se esforçado pra pôr nosso jogo a perder. Um grito a cada dia, e, mesmo que demore, mesmo que nos canse, sabemos que, um dia, o outro lado se cala, desiste, e, torçamos, também aprende.

Beatriz Madruga

Bia formou-se em Psicologia, mas até hoje não sabe por quê. É estudante de Letras. Prefere ler e escrever a conversar. Em 2015, publicou "Aos Pedaços, Com Tudo" pela Jovens Escribas.

Comments are closed.

Sociedade e Cultura

O pequeno assassino de Partisan (dica de filme)

Sociedade e Cultura

#PrimeiroAssedio reverso