Rio Grande do Norte, domingo, 28 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 24 de junho de 2018

Vidas roubadas pelas mãos do Estado: notas sobre os assassinatos de Marcos Vinícius e Guilherme Henrique

postado por Gabriel Miranda

Na semana passada, enquanto os holofotes da grande imprensa se dedicavam à cobertura da Copa do Mundo, dois adolescentes foram vitimados por disparos de arma de fogo, no município do Rio de Janeiro. Além do município da morte ser o mesmo, ambos foram assassinados no mesmo dia, a quarta-feira (20). Mas as semelhanças entre os dois adolescentes não param por aí. Marcos Vinícius da Silva e Guilherme Henrique Pereira tinham a mesma idade, quatorze anos, o que os caracteriza, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, como pessoas que acabam de entrar na adolescência, entendida como a fase entre 12 e 18 anos incompletos.

E, de forma a corroborar com as estatísticas do Atlas da Violência 2018, que indica que 71,5% das vítimas da violência física letal no Brasil são pretas ou pardas, os dois adolescentes eram, também, negros. Um deles, o Marcos, residia no Complexo de Favelas da Maré e foi assassinado durante uma operação realizada em conjunto com o Exército e a Polícia Civil. O outro, Guilherme Henrique, foi alvejado por disparos enquanto voltava do barbeiro, na Vila Vintém, periferia da zona Oeste do Rio de Janeiro, sem que se saiba, ainda, a identidade de quem efetuou os disparos. Tais assassinatos nos alertam para a falência do atual modelo de segurança pública, o fracasso da intervenção federal no RJ, as formas assimétricas de experimentação da adolescência e o processo que busca destituir de humanidade a população preta, pobre e periférica.

Completaram-se quatro meses desde o início de uma intervenção federal no Rio de Janeiro que, assim como a maioria das políticas públicas brasileiras no campo da segurança, em nada contribui para a redução da violência e insegurança urbana. A proposta de redução da idade penal, por exemplo, embora seja vendida como política de enfrentamento à violência, é inócua para tal fim e contribui para o processo de criminalização dos setores empobrecidos da classe trabalhadora, conforme pontuei há exatos dois anos no artigo “O que acontecerá depois que a idade penal for reduzida?“. Do mesmo modo, a polícia militar brasileira, com sua tática bélica, ao invés de reduzir a violência, constitui-se como a polícia que mais mata e mais morre no mundo, conforme os dados publicizados no 9º Anuário de Segurança Pública. A legislação brasileira sobre drogas, expressa sobretudo na Lei 11.343/2006, ao instituir o paradigma proibicionista como forma de lidar com o consumo, circulação e comércio de drogas, cria as bases para a existência de um mercado ilegal, o chamado tráfico, e assim, também produz e reproduz violência. No mesmo bojo das ações supracitadas, está a intervenção federal no Rio de Janeiro, um joguete político do Michael Timer – conforme já sinalizei em outra ocasião, entreguistas merecem tratamento adequado – e seus asseclas diante da possibilidade de derrota no processo legislativo para aprovação da Contrarreforma da Previdência.

A morte dos dois adolescentes mencionados no título deste texto aconteceu justamente durante a pretensa intervenção federal. E, especificamente a morte de Marcos Vinicius, no Complexo de Favelas da Maré, ocorreu durante uma operação da Polícia Civil em parceria com o Exército, que vitimou não apenas ele, mas seis outras pessoas. As práticas desenvolvidas ao longo de tal operação, como o assassinato sumário de civis e os disparos efetuados por helicópteros da Polícia Civil que produziram, conforme verificado pela ONG Redes da Maré, mais de cem marcas no chão, evidenciam o avanço do Estado de exceção – que não é senão uma expressão do próprio Estado burguês – implantado nas periferias brasileiras, onde prevalece a ausência de direitos – vale mencionar, também, a omissão do Judiciário diante dos abusos da intervenção militar – e o poder ilimitado do soberano, que determina quem deve viver e quem deve morrer.

Embora testemunhas e o próprio Marcos, momentos antes da morte, tenham afirmado que o disparo que o vitimou partiu de um tanque blindado, a informação difundida pela Polícia é que “a perícia não conseguiu identificar de onde partiu o disparo”. Ainda assim se, por ventura, o projétil que vitimou Marcos não tivesse partido de um policial ou militar, o Estado permaneceria sendo o responsável pelo assassinato do adolescente, pois esta morte fora produzida em uma operação orquestrada pelo Estado que, ao fazê-la, expõe toda aquela população à violência, contribuindo para que as periferias brasileiras cada vez mais se assemelhem a campos de concentração, onde o alvo privilegiado do extermínio é o jovem, pobre e negro, cuja vida é produzida socialmente como inferior às demais.

Nas redes sociais, tentativas de associar os adolescentes assassinados ao tráfico de drogas buscam tornar legítimas as mortes. Nada de novo! A mesma tática foi utilizada recentemente para vincular a imagem da militante política e vereadora Marielle Franco à organizações criminosas, e é adotada constantemente por programas policialescos que, no afã de justificar as mortes produzidas pela polícia, recorrentemente se utilizam da retórica “ele tinha envolvimento com o tráfico”. Marcos Vinícius não tinha, estava no caminho entre sua casa e a escola quando, com a farda do colégio, recebeu um tiro que atravessou seu abdome. Não há, também, nada que prove que Guilherme Henrique, adolescente que também morreu vestindo a farda do colégio, possuísse algum tipo de vinculação com o crime, pelo contrário. Mas, e se tivessem? Se fossem jovens que diante das escassas possibilidades que são ofertadas nas periferias, trabalhassem no mercado ilegal de drogas, suas vidas não teriam valor? Teriam menos valor? Suas mortes estariam justificadas? Seriam legítimas?

É importante combater as calúnias que são inventadas e responsabilizar aqueles que as constroem e difundem. Mas é também necessário enfrentar o discurso retributivo que enxerga como legítima a morte daqueles que são acusados de ter envolvimento com o tráfico de drogas. Afinal, no frigir dos ovos, essa racionalidade só é útil para defender que os moradores das periferias, em sua maioria pobres e pretos, sejam mortos violentamente. É doloroso escrever sobre esses jovens no passado! É lamentável que a adolescência deles tenha sido ceifada desta forma e é tão lamentável quanto saber que eles não são casos isolados: o extermínio da juventude pobre e negra é, de longa data, uma das características do Brasil.

Me pergunto quantos mais terão suas vidas subtraídas pelo Estado e quantos destes assassinatos serão silenciados. Enquanto não se romper com a ótica bélica de combate ao tráfico nas periferias – que funciona como o ato de enxugar gelo –, policiais, em sua maioria jovens e negros que identificaram nas forças armadas a possibilidade de trabalho, continuarão a travar uma guerra sangrenta com outros jovens pobres e negros que encontraram no comércio ilegal de drogas uma forma de adquirir, numa trajetória marcada pela humilhação e invisibilização, prestígio social, ou alguma fonte de renda que o permita consumir e, por conseguinte, existir, pois existir na sociedade de consumo pressupõe a aquisição de produtos.

Os efeitos desta guerra, como bem registra a realidade social brasileira, não são exclusivos aos policiais e trabalhadores do comércio ilegal de drogas. Os efeitos para estes dois atores, por si só, já se caracterizariam como um problema de grande magnitude. Mas, além disso, toda a população que reside nos fronts onde essas guerras ocorrem, as periferias urbanas, está sujeita a ser assassinada ou sofrer algum tipo de violência física ou psicológica. E é, deste modo, que crianças e adolescentes são baleados no caminho para a escola.

Gabriel Miranda

Cientista social (UFRN), mestre e doutorando em Psicologia, também pela UFRN. Pesquisador associado ao Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência (OBIJUV).

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