Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 19 de agosto de 2019

Sobre o que não quer se calar

postado por William Eloi

Você não acha engraçado que, em um país de analfabetos, onde são poucos os que têm acesso à leitura, e os que têm não leem e onde, e apesar disso, há seguidos cortes na educação, grandes livrarias fechando suas portas, você não acha engraçado, que mesmo assim, alguém ainda se lance a escrever? Eu acho tudo isso muito engraçado. Inclusive chego até rir de mim mesmo quando me encaro em frente ao espelho pela manhã. Porque só posso dar os créditos dessa piada de mau gosto, a um anjo gozador. O mesmo anjo filho da puta que um dia, quando eu nasci, disse-me: “vai, William, ser um trouxa na vida.”

Eu vou continuar chamando o meu anjo pessoal de Anjo filho da puta, porque é pessoal, e por que todo escritor tem um avatar para chamar de seu, que surge durante a escrita, parecendo lhe soprar aos ouvidos, quando a história – que o escritor acha que a detém – começa a se escrever sozinha, quando seus personagens adquirem vida e, de repente, se rebelam contra o criador – como me aconteceu tantas e tantas vezes – um tipo de transe, uma possessão, em que se assemelha também a casos de uma espécie de síndrome rara, em que dedos, mãos, mexem-se involuntariamente do comando do cérebro.

Essa “influencia”, se assim posso chama-la, sempre me aconteceu, mas não sabia como defini-la, como pôr em palavras, até ler o livro da jornalista e escritora espanhola Rosa Montero, A louca da casa, que num misto de autobiografia e ensaio, aponta magistralmente algumas singularidades dos escritores em seus processos narrativos, imaginativos e de criação. Montero dá a esse piloto automático o nome de Daemon, citando vários exemplos na história do mundo literário, como o exemplo abaixo:

 “Quando o seu Daemon estiver no leme, não tentem pensar conscientemente. Fiquem à deriva, esperem e obedeçam”, explica o escritor Rudyard Kipling. – E pensar que o pobre Rimbaud foi tão longe, para enfim achar-se no seu Inferno

Sim, é o mesmo é velho Daimon, de que já falava a Sócrates, na antiguidade. Esses “espíritos elementares e primordiais”, guia das velhas afetações humanas, esses impulsos que lançam alguns ao absurdo e a contradição, a loucura e a morte, sussurrando nos bares, nas noites de orgias, nos muros de um hospício ou nas celas de uma cadeia. Que de repente têm o poder de soprar aos ouvidos de um epilético e jogador compulsivo, por exemplo, que com mãos trêmulas pôde sublimar toda uma vida desgraçada, tornando-a maior. Transformando-a em Arte.

E mesmo agora, se ainda possa lhe parecer absurdo – como a mim muitas vezes parece – que alguém ainda lance mão da pena para uma plateia de surdos e de cegos, é porque ainda há gigantes a serem enfrentados nos campos dos moinhos.

Então se um dia você sorriu sem entender, quando olhou para a um homem que ganhava à vida se arrastando para cá e para lá, sem conseguir crer que as mãos desse mesmo homem, mãos rudes – pois assim foram feitas para o labor – desfilassem palavras tão sensíveis que fossem até capaz de ferir com sua beleza– o que você ainda não sabia, é que talvez estivessem apenas seguindo à profecia que um dia, um anjo filho da puta e gozador sussurrou em seus ouvidos.

 

William Eloi

Escritor e ex-guitarrista da banda de rock Electrilove.

Comments are closed.

Crônicas

Jesus e o pé de goiaba. Crônica natalina

Artes

Reflexões sobre a pandemia I