Rio Grande do Norte, domingo, 28 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 6 de outubro de 2019

Sobre a desigualdade racial potiguar: você vive em Miami ou África?

postado por Andressa Morais

 

Na semana em que as Nações Unidas celebram o Dia Internacional da Não Violência (02 de outubro), somos novamente expostos a números expressivos de mortes por homicídio no Rio Grande do Norte. Pesquisas que abrangem o tema da violência letal cujos jovens em nosso país estão no topo dos números infelizes proliferam-se, embora tenhamos um recuo em relação ao mesmo período do ano passado aqui no RN. O fato é que o diagnóstico sobre a vulnerabilidade de jovens negros é compartilhado entre os vários institutos de pesquisa e pesquisadores independentes, desde o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), passando pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública até chegarmos em um diagnóstico local divulgados pelo reputado Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (OBVIO)[1].

 

Os dados recentemente divulgados pelo OBVIO apontam que os jovens negros, isto é, pardos e pretos (seguindo o sistema de classificação do IBGE), entre 16 e 29 anos são os mais vulneráveis a sofrer com a violência e, mais, lideram o número de mortes por homicídio. Somente em 2019, foram computados pelo OBVIO 527 homicídios de jovens no RN por Condutas Violentas Letais Intencionais (CVLIs), sendo expressivas e preocupantes 479 mortes de jovens negros, e nesse volume de dados destacam-se as correspondências de gênero masculino e cor/raça negra.

 

O que remete à pergunta inicial que motivou a escrita deste texto: você vive em Miami ou África? Ora, a pergunta é alegórica e retórica, posto que a/o leitora/or que conhece a cidade e o estado sabe que Miami é o nome de uma praia localizada no bairro nobre da cidade de Natal e concentra uma nata de moradores estabelecidos, por sua vez a África se trata de uma comunidade localiza do outro lado do Rio Potengi, no bairro da Redinha, habitada por classes populares. Assim, ao caminhar entre os dois espaços públicos é possível identificar um perfil para cada um desses lugares, resumidamente, marcados por pessoas brancas de classe média e alta de um lado e pessoas negras de classe popular e da “ralé” de outro (utilizando aqui as categorias propostas pelo sociólogo potiguar Jessé Souza). A alegoria espacial aqui é utilizada de maneira a fazer elucidar a desigualdade racial que dá chão para esses dados na capital.

 

Objetivamente o indicador de letalidade encontra correspondência com a desigualdade racial, assim como o gênero masculino, a geração jovem e, não por acaso, o contexto de localidade que auxilia ao leitor visualizar essas desigualdades expressas nos corpos, nas mortes e nos espaços marcadamente segregados. A menos que se demonstre o contrário, a cor da pele e o lugar social que ela ocupa em nosso contexto está intimamente ligada com o grau elevado de exposição à violência. Mais do que isso, cumpre saber que dependendo de onde um jovem negro estiver situado (seja pelos marcadores sociais da diferença de gênero, classe, raça e geração), ele estará mais vulnerável à violência e à letalidade por efeito de lugar (nos termos de sociólogos como Bernard Lahire ou Erving Goffman). Na praia de Miami ou na praia da Redinha, um jovem negro está em situação mais vulnerável para sofrer algum tipo de violência ou ser vítima da letalidade.

 

Jornalistas me perguntaram o que poderia levar a tal situação? Por que os jovens negros são os que mais morrem por homicídio no RN? Minha resposta não é simples, mas objetiva: a desigualdade. Ela se expressa atualmente dentro de uma lógica que é simultaneamente informada por classe, raça, gênero, geração e é uma herança maldita de nosso passado escravocrata que imprimiu marcas profundas de segregação na vida pública brasileira e que não se mostra diferente em nosso contexto estadual e municipal. Nem no segmento etário mais vital de uma sociedade é dado à população negra o direito de experimentar alguma noção de dignidade, alguma marca positiva que não seja a repetição sistemática de uma situação de vida precária. Observem, de outro modo, mesmo jovens que ocupam um lugar diferente no que concerne à classe encontram-se vulneráveis à violência racial em lugares ou situações cuja correspondência não é direta com a criminalidade. Esta correspondência não é aleatória, se dá em face de um entendimento compartilhado por alguns pesquisadores e autoridades cuja resposta está associada ao fato desse número elevado de mortes ter sido apontada como causa da associação desses jovens com o crime, no sentido da fácil cooptação ou de uma ausência de futuro que faz o jovem “escolher” ser um criminoso. Cabe refletir, antropologicamente, que tal afirmação expressa uma reificação desse jovem negro e se revela absurda e limitada, pois um cientista social pouco experimentado em pesquisa deve ter como horizonte que ao falarmos em criminalidade estamos obrigados a refletir sobre as desigualdades. Nesses termos, considerar o único lugar de agência possível para um jovem negro ser a escolha para a criminalidade, implica em desconsiderar qualquer responsabilidade da sociedade em criar condições mais equânimes de participação, reconhecimento e dignidade para uma existência digna entre esses atores da vida social. Jovens negros aparecem nos noticiários extraídos do direito de viver dignamente, usurpados de uma existência carismática ou simplesmente como jovens que possam vir a ser algo ou alguém, sem essencialismos ou destinos pré-escolhidos.

 

Destinos pré-escolhidos se refere no terreno da sociologia a uma repetição estrutural que se encontra bem representada nos dados divulgados pelo OBVIO, isto é, são sempre os jovens negros, cuja experiência de socialização é marcada por experiências de violência, estrutura afetivo-amorosa esgarçada, compreensão borrada sobre a própria identidade e baixa escolaridade. Os dados quando aparecem não são exagerados, são realistas e fazem a esfera midiática se mobilizar em torno de um problema público que está a se repetir continuamente.

 

Nesse sentido, pensar o desenho de políticas públicas voltadas para essa questão passa não só por colocar em discussão a desigualdade, assim como reconhecer as marcas de uma história de segregação e seus desdobramentos no contexto atual, mas requer de autoridades públicas e de gestores a formulação de políticas consistentes e dirigidas que levem em consideração aspectos que estão sendo apontados por pesquisadores de institutos como o IPEA, quando constatam que “homens com até sete anos de estudo possuem 15,9 vezes mais chances de sofrer um assassinato do que aqueles homens com nível universitário, o que mostra que a educação é um verdadeiro escudo contra os homicídios[2].

 

Se pensamos a educação como uma alternativa para elevar a expectativa de vida desse extrato da população, consideremos também que não é um fim em si mesmo e que expectativas para mudança do “destino pré-escolhido socialmente” devem estar informadas por cooperação entre pesquisadores no plano das ações de prevenção, mas também de educação e fomento à cultura. Se a entrada em facções criminosas parece ser nesse momento o “futuro promissor” de um jovem negro no RN, devemos nos questionar quais os horizontes de possibilidades de se tornar algo diferente em situação de extrema escassez, indignidade e precariedade existencial. A cor da pele continua sendo um marcador social de diferença hierarquicamente inferiorizado, assim enquanto não se dirigir para esse segmento políticas públicas que ampliem a sua capacidade agência, continuarão expostos à violência iminente e a manutenção dessas estatísticas genocidas.

 

Assim, seja em Miami ou África, Natal se mostra vergonhosamente o pior lugar para jovens negros, uma vez mais concentra o número abismal (107 casos em 2019) de homicídios entre esses jovens negros. Tal desigualdade também pode ser expressa quando se constata que esse mesmo segmento é o que menos acessa políticas públicas, do mesmo modo também pode ser dito que o extrato social que mais morre por assassinato e crimes violentos. Em termos de RN, nota-se que a mancha vermelha de sangue expressa o símbolo da vulnerabilidade que não está concentrada somente na distribuição espacial, isso também colabora para uma segregação racial, mas o dado objetivo é que essa desigualdade que alcança mais jovens negros está inscrita no corpo que é antes de tudo construto social e que precipita o assassinato em massa de uma juventude que cada dia que passa parece se mostrar mais “sem futuro”[3].

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Dados divulgados no 12º exemplar da revista do OBVIO sobre mortandade da juventude em 2019.

[2]Ver: http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/index.php?option=com_content&view=article&id=730

[3] Aquarelas realistas de Stephen Scott Young ilustram o artigo.

Andressa Morais

Antropóloga. Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Mestra Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Interesses nos seguintes temas: movimentos sociais, gênero, feminismo, raça, direito, sentidos de justiça e interseccionalidade.

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