Rio Grande do Norte, quarta-feira, 01 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 18 de abril de 2020

A liberdade das asas

postado por Túlio Madson

Acordei e tinha asas, espremidas no quarto pequeno. Passo pela porta com alguma dificuldade, na varanda a vista me chama, o céu profundo, claro, quero mergulhar no oceano de luz, mas ter asas não significa que sei voar. Não se pode aprender a voar simplesmente voando. Vou para o telhado do prédio, abro as asas desajeitadas e caio desengonçado. Desaprendi também a andar. Não sei se voarei, mas de qualquer modo preciso ficar em pé. Penso no dilema do salto que me espreita: liberdade ou morte. Como saber a hora certa? É preciso um empurrão? Como saltar sem o trágico encontro ao chão? Sou mais livre com asas?

Ter liberdade não é o mesmo que ser livre. Voar exige disciplina, ser livre também. Com asas não posso mais andar como antes, não posso mais viver no mesmo espaço, nem ficar tão próximo. Tenho a possibilidade de voar na medida em que me são tiradas outras possibilidades. Tenho inclusive a possibilidade de não voar. Para que servem asas que não voam? Não escolhi ter asas, por isso posso também ignorá-las. Sonhava em voar quando não as tinha por que pensei que nunca as teria. Mas agora que as tenho é diferente, queria quando não podia, mas agora que posso, posso também não querer. Sou livre na medida em que mantenho as possibilidades. Ser livre é poder agir de outro modo.

Voar é um ato de coragem, mas ser livre é aceitar apenas quando convém. Por isso recusar o voo também exige coragem. Toda nova decisão é corajosa, aceitar ou recusar por comodidade é acovardar-se. Se quero voar tenho que ter a disciplina de dominar o voo, se não quero tenho que disciplinar meu caminhar com asas. De todo modo serei diferente, na novidade do céu ou na familiaridade da terra. Foi quando a chuva fechou o céu e inundou a terra. Coberto pelas asas impermeáveis aprendi a lição, nem toda escolha é binária, a dualidade também nos aprisiona, ser livre não é apenas aceitar ou recusar possibilidades dadas, também é preciso coragem para buscar novas possibilidades.

Desço do prédio e abraço o mar. Adquiro a leveza para flutuar. Se tenho asas e sou livre, uso-as para mergulhar.

Asas para aprofundar.

Túlio Madson

Colunista na Carta Potiguar desde 2011. Professor e doutorando em Ética e Filosofia Política pela mesma instituição. Péssimo em autodescrições. Email: tuliomadson@hotmail.com

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