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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 3 de março de 2021

Política e ciência: Moisés e as duas vocações

postado por Carta Potiguar

Alipio De Sousa Filho,

Diretor do Instituto Humanitas UFRN

         Faleceu ontem, 02 de março, o professor Moisés Domingos Sobrinho, colega de trabalho na UFRN, um amigo desde 1981. O nome bíblico – o do personagem que (conta o mito) abriu o mar vermelho para passar com a população que abandonava o Egito[1] –, embora sendo ele ateu, parecia ser um signo com alguma força performativa sobre seu modo de ser: condutor, guia. Assim foi para vários. E o fez como uma liderança independente, livre, ainda que conciliador.

         O sociólogo alemão Max Weber escreveu sobre a política e a ciência como duas vocações distintas. Não no sentido da vocatio medieval, vocação como dom, mas como efeito de uma construção pessoal de “dedicação íntima à tarefa”. E dirá: “somente quem se dedica exclusivamente ao trabalho ao seu alcance tem personalidade”. Isto é, uma marca, uma identidade pelo que faz. E isso na ciência, na arte e na política. Nesse âmbito das “vocações”, não tem nada dado pela natureza (dons naturais) nem por poderes celestiais (dons divinos): ou se trabalha para ou não se chega a lugar nenhum.

         Moisés Domingos, como vários outros de nossa geração intelectual, tentou aliar política e ciência por um bom tempo, militância e vida acadêmica e intelectual. Enquanto atuava politicamente, buscou manter sua produção em ensino na universidade, pesquisa, e uma produção de trabalhos escritos que publicou em periódicos acadêmicos ou em livros. E foi nessa atuação que buscou conciliar pensamento e ação mais direta que agia como aquele que poderia conduzir pessoas, grupos, movimentos, sempre orientados por ideias com rigor intelectual, científico, sem concessões ao pensamento fácil, aligeirado, muito mais dedicado a concessões a causas que à justeza das ideias corretas, produzidas por análises como as que ele buscou sempre fazer, apoiado em conceituação e teorização mais complexas que nem sempre o pragmatismo político acata com facilidade. Moisés fez suas tentativas de aliar política e ciência e nunca abriu mão da ideia de oferecer alguma análise mais consistente dos fatos políticos e sociais que se ocupou de interpretar, e que frequentemente lhe chegavam como objeto por alguma demanda de análise.

         Em sua trajetória, parece claro que, após tudo, optou pela vida acadêmica e pela dedicação exclusiva ao trabalho intelectual no qual depositava mais confiança que na política. Experimentado, em anos de participação social e política, descobriu, como Gilberto Gil, que “a política é muito antipoética”. Homem de sensibilidade social aguçada e observador da cena pública e histórica, Moisés sabia que mais poderia fazer na ciência que na atuação política tout court. Nunca deixou de compartilhar com amigos e mais próximos sua desconfiança com os esquemas partidários, das instituições políticas e das disputas pelo poder (grandes ou pequenas).

         Sua decisão em favor de uma dedicação mais “exclusivamente ao trabalho ao seu alcance” (Weber), no seu caso, dedicação à ciência, mas sempre na ambivalência de atender algum “chamado” da política (até aceitar cargos em nível de governo federal), rendeu importantes frutos: organização de livros, publicação de artigos, organização de seminários, colóquios, congressos. Foi incentivador e promotor de alguns encontros e congressos acadêmicos, alguns que fizeram história na UFRN e em outras universidades no âmbito de um de seus últimos temas de estudo, o tema das representações sociais.

         E foi como pesquisador das representações sociais que submeteu a própria esfera da política ao crivo da análise teórico-científica, impregnado do conceito de “campo político” que encontrou na socioantropologia crítica de Pierre Bourdieu. Se nunca abandonou seu interesse pela política, não a tinha mais, todavia, senão como objeto da pesquisa sociológica sob o ângulo de um campo que requeria observação e estudo. Nos últimos meses, ocupava-se em escrever sobre o assunto, analisando o quadro político mais recente que vivemos no Brasil.

         Infelizmente, a morte – que chega sempre cedo, na vida de qualquer um, jovem ou idoso, pois sempre há vida a ser vivida, vida desejando seu viver, quando se está vivo; e, por isso, a vida quer sempre viver (e “expandir-se”, acrescentou um colega, e é bem certo!, é o que o filósofo Henri Bergson chamou “élan vital”) – a morte levou Moisés Domingos, interrompendo uma carreira intelectual e acadêmica que muito ainda renderia os frutos de sua dedicação não mais a uma participação política que foi titubeante, incerta e sempre tensionada por suas próprias problematizações mas dedicação ao que ele verdadeiramente tinha como uma paixão: a vida de estudos e a produção do conhecimento teórico.

         Moisés faleceu aos 67 anos e vemos interrompida uma trajetória daquele que certamente iria nos oferecer produção intelectual que nos vai fazer falta. Fiquemos, todavia, com o que ele nos ofertou, que constitui contribuição a um campo de estudos por demais fundamental: aquele que demonstra a força da linguagem, capaz de criar realidade, hábitos, práticas e categorias de percepção em sua eficácia performativa, na forma de representações sociais que, para o bem e para o mal, agem produzindo reconhecimento positivo de pessoas e realidades, mas igualmente agem produzindo estigma, discriminação e exclusão. Temas que moviam Moisés para a ação e para a solidariedade com o outro. E que o mobilizou, no campo científico, a buscar reunir a socioantropologia crítica de Pierre Bourdieu com a psicologia social de Serve Moscovici e Denise Jodelet num empreendimento intelectual que não deve ficar sem continuidade. Aos seus discípulos, àqueles que ele conduziu na pesquisa e na orientação acadêmica a tarefa da continuidade do que Moisés entregou-se a construir no campo científico.


[1] Mas a história não é essa: nem seu nome era Moisés, mas provavelmente Ramsés I, e a população que saiu do Egito com ele eram os habitantes da cidade de Akhenaton, sob a qual se abateu a fúria do Faraó Aí, decidido a impedir a continuidade do monoteísmo e culto ao deus-sol Aton, em oposição à sua instituição pelo faraó Amenófis IV.

Carta Potiguar

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