Rio Grande do Norte, domingo, 28 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 22 de maio de 2021

A vacina e os professores: alguns são mais iguais do que outros?

postado por David Rêgo

É correto vacinar primeiro servidores públicos?
Em notícia no dia 21 de Maio o portal G1 informou que a justiça do RN determinou o adiamento da vacinação dos professores da rede pública que começaria dia 24 de Maio. Explicaremos neste texto o que leva a vacinação seletiva ser antiética mas vista como “normal” por muitos em nossa sociedade.

  1. 1.      – O menor dos problemas: professor vs professor

Um princípio muito famoso da justiça coloca que “devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”; esta é uma boa definição do que seria igualdade. O que veríamos, a partir do dia 24 de maio no Rio Grande do Norte seria a reprodução da desigualdade. E neste contexto é interessante pensar que fatores contribuem para sua reprodução. Os profissionais da educação começariam a ser vacinados, mas não pela lista de risco de cada profissional e sim por critérios “sombrios”. Explicamos.

Geralmente o IDEB de uma instituição corresponde a sua condição estrutural, ou seja, uma escola com um alto IDEB possui um bom índice de aprendizagem uma vez que para manter este índice há de ter uma boa estrutura física e humana. Escolas que possuem um baixo IDEB, no geral, são escolas com condições precárias, aquelas com estruturas desejáveis e profissionais com remuneração inferior à média e sobrecarregados. Tanto na rede de ensino pública quanto na privada, o IDEB tem o poder de medir tanto o sucesso como a precariedade do 5º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio.

Podemos dizer que o IDEB pode ser utilizado para mapear os locais em que tais escolas com essa precariedade e, consequentemente, a fácil propagação do vírus estão localizadas. A pergunta que fica é: o que levou o governo a não utilizar o índice na hora de estabelecer a prioridade de vacinação entre os profissionais da educação? Ora, os dados já existem e estão prontos, bastando apenas “colocá-los no mapa”. Bem, a listagem de escolas e notas já existem; é uma informação pública que pode ser acessada por qualquer pessoa, inclusive você, leitor(a), que está nos lendo. Uma planilha do LibreOffice, Google Maps e um estagiário trabalhando em “home office” resolveria tudo com um custo baixo.

Há ainda outro problema nessa política de vacinação. Apenas as pessoas detentoras de diploma e carreira pública é que podem ser vacinados. O restante, as pessoas que trabalham na limpeza da escola, na segurança patrimonial, na segurança alimentar etc., em outras palavras, os que não possuem diploma e/ou carreira pública continuarão em risco. Continuamos, mais uma vez, a tratar os indivíduos com escalas injustas. No lugar de tratar os iguais igualmente na medida de suas desigualdades, temos tratado alguns de maneira mais igual do que outros.

Aqueles que não se sabe quando voltarão presencialmente já possuem data para vacinação (o documento de retorno das aulas presenciais na rede pública foi apresentado sem data para início, não se sabe ao certo quando as aulas presenciais nas escolas públicas retornarão). Os que já estão trabalhando no modelo presencial (na rede privada) não possuem cronograma de vacinação. Supostamente trata-se de uma completa e inacreditável inversão de valores. Entretanto, só se surpreende com isto quem não conhece bem o Brasil. Temos um protejo em que um grupo, mesmo antes do retorno presencial, é vacinado e o grupo que já está trabalhando e correndo risco não tem vacina. Um absurdo sem precedentes da nossa “cultura bacharelesca”. Sérgio Buarque de Holanda em seu livro “Raízes do Brasil” e Gilberto Freyre em “Sobrados e Mocambos” já denunciavam a prática na década de 1930. E ainda hoje a “cultura bacharelesca” continua a ser um entrave e um problema para promoção de justiça social em terras tupiniquins.

O que levou de maneira “inconsciente” ao governo tomar essa atitude entre tantos fatores está a influência da chamada cultura bacharelesca. A cultura bacharelesca consiste no fato de alguns membros da sociedade, dotados de diplomas e ocupantes de cargos públicos possuírem um poder simbólico na sociedade maior que os demais. Gerando assim uma distorção nas relações de poder e um privilégio de tratamento em relação ao “cidadão comum”. Nenhum exemplo melhor da cultura bacharelesca que o decreto de vacinação de professores no Estado do RN. O decreto segue a ordem “exata” que manda a cultura dos bacharéis.

Independentemente do risco de cada profissional, primeiro vacinamos os que possuem diplomas e são funcionários públicos. Depois vacinamos os funcionários que dão suporte aos bacharéis da rede pública. Após isso, vacinamos os com diploma, mas que não são funcionários públicos. É essa a ordem. Na exata ordem que manda a cultura do bacharel. Porém, afirma-se que os critérios escolhidos para a vacinação foram técnicos. Sim, talvez, mas não sem a influência herdada do pensamento tradicional brasileiro. A técnica não é livre dos padrões culturais.

É válido observar que só existe cronograma para a vacinação dos professores da rede pública. Não há cronograma disponível para nenhuma outra área. Os demais setores da educação, quando serão vacinados? Não há data confirmada. Há apenas a informação que serão vacinados “depois”. É a Pazuellização da vacinação. Serão vacinados “no dia D e na hora H”.

2 – O maior dos problemas – a corda vai quebrar do lado mais fraco

Como dissemos anteriormente, o restante (as pessoas que trabalham na limpeza da escola, na segurança patrimonial, na segurança alimentar etc.) também estão sem cronograma de vacinação. Estes profissionais, em sua imensa maioria, tem maior exposição que os professores, uma vez que devido suas condições financeiras dependem de transporte público (que estão sempre lotados), trabalham em locais com grande circulação de vírus e precisam ter um mesmo tratamento. “Profissionais da educação” não são apenas aqueles que estão dentro de sala; são todos aqueles que dão apoio para que o ensino dentro de sala possa acontecer.

O ambiente mais arriscado em uma escola no quesito transmissão de covid-19 são os banheiros. Ora, o local é frequentado por todos, é apertado e com pouca circulação de ar, ou seja, ambiente propício para a sobrevivência do vírus por um tempo maior. Por que não foi dada prioridade da vacina para essas pessoas? Nós sabemos a razão? Sim, sabemos! “Todos os animais são iguais, porém, alguns animais são mais iguais do que outros”. A prioridade deveria estar no risco, não no diploma.

Enfim, é isso.

David Rêgo

Sociólogo, antropólogo e cientista político (UFRN). Professor do ensino médio e superior. Áreas de interesse: Artes marciais, política, movimentos sociais, quadrinhos e tecnologia.

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