Rio Grande do Norte, domingo, 28 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 13 de julho de 2021

Aqueles 10% imundos

postado por Joao Paulo Rodrigues

Quando eu tinha meus 10 anos, passei por minha primeira experiência de exploração capitalista. Uma dona de restaurante da cidade me chamou para vender picolé para ela. Meu lucro era de 10% de cada unidade vendida. Um picolé custava R$ 0, 10 (centavos), logo, para eu ganhar R$ 1, 00 (um real), eu teria de vender 100 picolés, haja vista que 10% significava R$ 0, 1 (centavo). À época, o distrito onde eu morava tinha cerca de 2000 mil pessoas. Estatística e praticamente eu nunca vendia/venderia as 100 unidades, de modo que, corriqueiramente, eu vendia cerca de 50 picolés a cada expediente.

Na prática, isso significa que a dona do estabelecimento ficava com cerca de R$ 2, 50 (dois reais e cinquenta centavos), pagava R$ 2, 00 (dois reais) ao seu fornecedor e me pagava R$ 0, 50 (cinquenta centavos). É um negócio perfeito para qualquer padrão econômico. A dona do estabelecimento pegava os picolés no fiado e eu vendia-os. Ao fim do dia, ela tinha o dinheiro para pagar ao fornecedor do produto, me pagar e ficar com a margem do lucro.

Ela ganhava, sem sair de casa, quatro vezes mais do que eu, que passava cerca de 8 horas vendendo o gelado – padecendo em calor infernal! –, fazendo um intervalo para almoçar. Descansar? Jamais! Esses 10% que eu ganhava a cada expedição – que geralmente ficava entre 40 e 50%, no máximo – era para o dízimo. Às vezes eu doava, às vezes não. Sempre sentia muita culpa quando deixava de dar a primícia para a igreja em razão de meu vício por vídeo game. Era muito tentador: a cada R$ 0, 50 (cinquenta centavos) eu poderia ter o prazer de passar 50 minutos jogando Donkey Kong!

Peço desculpas ao leitor por essa maçante exposição de preços. Se fez necessário para que você tivesse a real dimensão do submundo econômico nas mais pequenas – porém, não tão simples – operações financeiras. Essa relação econômica sacramentada pelo empenho da palavra me permitiu fazer alguns cálculos. Todavia, há alguns acordos que não consigo fazer cálculos matemáticos que, intuitivamente, sugeriam que quanto mais eu trabalhava, menos eu valia.

Parece que a exploração era coisa de família. Eu também trabalhei para o pai dessa dona de restaurante. Enquanto ela me fornecia os picolés e a caixa de isopor – não chega a ser um meio de produção, mas é o meio de comercialização –, seu pai dava sua um burro encarroçado para buscarmos as comidas dos porcos. Para essa atividade, se fazia necessário cerca de dois ou três garotos. Cada um ganhava R$ 0, 50 (cinquenta centavos) no fim do dia.

Apesar de muito jovem – na verdade, uma criança –, eu sabia que vender picolé era um mau negócio; na verdade, péssimo. Eu sabia que ambos os ofícios eram exploratórios, porém, devido ao fato de que só sairíamos para pegar lavagem no fim da tarde, julguei que seria menos explorado nessa atividade. Apesar de não fazer gosto, a dona do restaurante não desgostou muito, não, afinal, estava tudo em casa: os porcos eram do pai dela, que eram dela também.

Passei poucos dias na venda de picolés e alguns meses no recolhimento de comida dos porcos.  Acho que aos 12 anos decidi mudar de ramo. Passei a vender milhos. As condições eram as mais insalubres possíveis. Passava pelo menos 10 horas do dia no Sol. Ganhava cerca de 20% a cada espiga vendida, que custava R$ 0, 50 (cinquenta centavos). Ou seja, para eu ganhar RS 1, 00 (um real),l eu teria de vender 10 espigas. Isso significa que de cada R$ 5, 00 (cinco reais), R$ 1, 00 (um real) fiava para mim e R$ 4, 00 (dois reais) ficava para o vendedor da mão de milho, o qual, considerando seus gastos, lucrava R$ 2, 00 (dois reais), o que significa 100%.

Nesse trabalho eu me senti menos explorado, apesar da angústia do calor do Sol. Talvez isso tenha ocorrido porque eu via meu chefe na lida comigo. Além de oferecer as bandejas para trabalharmos, ele passava o dia cozinhando milho. Pode parecer, mas não é fácil “cuidar da panela”. “Cuidar da panela” significa escolher as melhores espigas, limpá-las – tirar os fios que ficam entre carreira de milhos –, separar as que devem ser cozinhadas das que devem ser assadas, preparar as garrafinhas de água com sal e acender o fogo de carvão. Essa parte do serviço fica, geralmente, com algum vendedor mais antigo; é como se ele fosse o gerente. Porém, na minha época, só um, entre mais de 12 vendedores de milho, tinha esse “gerente”.

Nessa época eu também lavava carros para aumentar minha renda. Essa atividade era a que me dava mais lucro, pois não tinha de prestar contas a ninguém. Entretanto, como nada é simples e fácil em nossas vidas, havia muita competividade, ao passo que havia muita liberdade para atuar. Quando um carro estacionava, era um corre-corre infernal. Mutãs vezes assustávamos os motoristas. Disputávamos bastante porque sabíamos que se ganhássemos R$ 0, 10 (centavos), tínhamos a certeza de que 100% daquele valor era nosso – claro que não nos valíamos da percentagem, usávamos o bom siso matemático.

Às vezes, quando era um dia abençoado, terminávamos o serviço com R$ 4, 00 (quatro reais) no bolso. Só para você ter uma ideia, para eu conseguir esse valor vendendo picolé, eu teria de trabalhar 8 dias. Se fosse vendendo milho, seriam 4 ou 5 dias trabalhando de Sol a Sol para ter a mesma margem e lucro. Contudo, como eu disse, era um setor muito competitivo. Lembro-me que as duas ruas do distrito eram divididas em duas zonas.

A lei dos mais fortes imperava. Como se fossem organizadas por gangues, cada uma das duas ruas principais tinha seus líderes. Apesar de não haver pedágio ou algum outro imposto para trabalhar nas ruas, tinha uma lei muito simples e objetiva: quando os mais velhos estivessem na pista, somente as sobras ficavam com os novos e novatos, ou seja, se um carro estacionasse, a primazia deveria ser do dono da rua que estivesse lá. Mas, se chegasse outro carro, aí os mais novos poderiam brigar entre si para poder limpar o carro. Interessantemente, os mais velhos não brigavam muito entre si. Quando ocorria, coisa rara, era somente para estabelecer o poder através da força, no sentido de demarcar zona. Nunca brigavam por disputa de território; cada um sabia seu lugar.

Os antigos eram legitimados mais em razão de terem sido os primeiros que em função de sua força, que só usavam quando fosse extremamente necessário, isto é, quando se sentiam ameaçados. Raramente aparecia um gaiato que quebrava a regra. Quando isso ocorria era punido exemplarmente. Nem eu, que era irmão de um dos donos da rua, gozava de privilégio. Apesar de eu ser café com leite – título que me ajudava a não apanhar frequentemente –, não tinha privilégio algum. Se eu não brigasse, disputasse minha posição com os mais novos, não ganharia dinheiro.

Eu falei que às vezes conseguíamos ganhar R$ 4, 00 (quatro reais) no fim do dia. Porém, esse fenômeno era raro de acontecer. Contudo, deve ser dito, no pior dos casos, ganhávamos pelo menos R$ 1, 00 (um real), que era infinitamente melhor que vender picolé e/ou milho. A fim de aumentar nossa renda, jogávamos vira-prata. Era esse jogo que nos garantia bênção ou maldição. No fim da tarde, após contar as moedas ganhas, nos juntávamos para jogar vira-prata, a fim de enriquecermos um pouco mais ou ficarmos miseráveis de vez. Eu nunca fui muito habilidoso nesse jogo, contudo, volta e meia conseguia ter sucesso.

Desde aquela época eu já tinha noção que vivíamos entre o martelo e a espada. Éramos um pedaço de ferro forjados na violência física, psicológica e financeira. Sempre vivíamos o dilema de trabalhar muito e ganhar pouco – mas na certeza de ter algum trocado garantido – ou trabalhar menos e ganhar um pouco mais – se o dia fosse bom, se tivéssemos sucessos em uma briga na rua… eram muitos “se”, para haver um “então”.

Esses não foram os únicos trabalhos que tive, mas, foram os mais marcantes. Já carreguei carvão, já vendi salgados, já ajudei vendedores de diversas maneiras, assim como já fui entregador delivery – essa experiência merece um texto à parte.

Parei de trabalhar no pesado, a partir de meus 15 anos; talvez em razão da vaidade adolescente. Dessa época em diante, passei a me dedicar aos estudos e a ser professor substituto. Eu já cacei, pesquei, agricultei e já fui servente de obra, entretanto, nunca desempenhei essas atividades regularmente, de modo que não posso considerar que de fato desempenhei esses ofícios.

Troquei as ruas pelas salas de aula. Aos 18 anos já dava aulas como professor substituto esporádico. Não irei repetir aqui uma exposição numérica, mas, também era explorado. Sempre na lógica dos 10%, meus colegas, amigos e conhecidos empurravam a faca em mim, em nós – eu não era especial.

Faz tanto tempo que me afastei dessas atividades, que quase não me lembro que um dia as desempenhei. Algumas coisas em nem me lembro mais, para ser honesto. Contudo, eu não consigo esquecer da sensação de estar sendo lesado. Desde criança, estranhamente, eu sempre notei que aquilo era errado. Sentia que estava sendo explorado, ainda que eu não soubesse as miudezas das coisas.

Mas, o tempo passou, me formei, estudei, aprendi outra profissão, ganhei dinheiro com ela. Depois aprendi outra profissão e tenho ganho o pão com ela. Todavia, nada me convence que somente os ricos exploram os ricos. Não obstante tenha lido e estudado textos de socialistas, nada me convence que as pessoas perto de mim me exploravam porque era o contexto, porque eram pobres, por isso e aquilo.

No bom e simples português: aquelas pessoas que me exploravam eram umas otárias mesmo! Eram tão escrotas que a lógica dos 10% era aplicada em tudo. Sabíamos que erámos roubados, mas, era o que tínhamos. Por outro lado, aqueles que nos roubavam tinham completa noção de que estavam ganhando absurdos em cima de nós – quanto mais trabalhávamos, menos valíamos.

Com isso, não quero dizer que a tal da livre iniciativa é maravilhosa, pois, como narrei, era uma lógica de cada um por si e deus por ninguém. A livre iniciativa se parece muito com uma disputa por algum cliente, pode acontecer e tudo: briga, estresse, estrago, prejuízo, etc.

A lição que eu tenho tirado de tudo isso é: o mito do povo brasileiro que é hospitaleiro não resiste às entrelinhas da relação social; nossa gente é ao mesmo tempo solidária e perversa. O fel da balança é a realidade histórica, que não serve, jamais para justificar algo. Uns escolhem se ajudar, outros preferem se matar. As ações são motivadas sócio-historicamente, porém, isso não serve para justificar as ações em si.

Aqueles 10% imundos parece ser parte (eterna) de nosso mundo.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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