Rio Grande do Norte, domingo, 28 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 23 de outubro de 2023

APELIDOS, QUEM VIVE SEM ELES?

postado por Joao Paulo Rodrigues

O barulho das crianças, de manhã cedo, ao se arrumarem para irem à escola, era contrastado com o silêncio ecoante diante de uma mesa quase esvaziada. Apenas de quando em vez havia um bom café da manhã. Tudo dependia das doações, como gratificações, que Dona Imba recebia no dia anterior, ao realizar uma forte reza para curar mau-olhado. De modo geral, os infantes só tomavam café com leite e escaldado, que era uma mistura de leite e farinha de mandioca, que mais se parecia com uma argamassa mal misturada. As crianças só podiam fazer duas refeições ao dia, por isso, sempre contavam com a merenda oferecida pela escola, para as mais velhas, e pela creche, para as mais tenras.

Elas tomavam um ralo café da manhã, às vezes, e almoçavam, com certeza. Porém, o jantar era um luxo, quase um evento, quando se tinha. A miséria de Dona Imba contrastava com a fartura de sua filha, sua vizinha, que criava oito filhos à base de leite e frango, frutas e verduras. Tia Bonitinha ajudava como podia, entretanto, também tinha de alimentar suas crias. Além disso, Zé Maria, pai dos netos de Imba, deveria ser o provedor da família dele, lembrava Lucimar, esposo de Bonitinha. Ele não estava errado! Zé era pai ausente, assim como a mãe das crianças. Se não fosse a ajuda de Cida, que compartilhava, todo dia, sua sopa esfumaçada, tudo seria mais difícil para a senhora e seus netinhos.

É verdade que, com o passar dos dias e dos anos, a fome diminuiu. Com os programas governamentais e o crescimento das crianças, já se conseguiam segurar o choro; apesar de ainda sentirem fome, já não deixavam de dormir por conta disso. Perder o sono em razão da fome era um luxo face à urgência do trabalho diário, que todos precisavam realizar.

Por sorte, tais episódios do passado servem menos como lamento e mais inspiração para mudar, à força, o destino histórico da própria realidade. Assim gostava de pensar José das Videiras, cujo sobrenome fictício é uma referência às azeitonas pretas, que ele pensava serem uvas, porque Lequinha, sua vizinha, sempre lhe dava uma porção de azeitonas, e dizia, sorrindo: “Zé, trusse suas uvas”.

O menino José, inocente, gritava aos quatro ventos, querendo fazer inveja aos seus amiguinhos: “Tia Lequinha me deu uvas, uvas da feira”. Pobre criança, por sua inocência, ganhou um apelido que, à uma, expressava engodo, brincadeira e boa intenção. Não se deve culpar Lequinha por nada. Aquecer aquele pobre coração infantil com a mais tola enganação, foi, era um ato de amor. Depois das “uvas”, sempre tinha o barro como sobremesa. O apelido rendido a José foi, na verdade, uma bênção, pois, poderia, e com justiça, ter sido “Zé Come Barro”. Para sua sorte, e azar de seu amigo Naná, este fora apelidado de “Naná Come Barro” primeiro, para fazer par com “Dedé Come Luxo”. José era um sujeito de sorte!

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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