Rio Grande do Norte, sexta-feira, 26 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 27 de dezembro de 2016

Contribuições para compreender o racismo brasileiro

postado por Gabriel Miranda

Costumo dizer que o Brasil é o país onde, ao mesmo tempo que se culpa a vítima do estupro, também se quer matar o estuprador. E com este exemplo didático, que certamente simplifica a questão, quero apenas destacar o caráter punitivo que marca o pensamento social de boa parte dos brasileiros. No início desta semana, na segunda-feira para ser exato, um vídeo[1] começou a circular nas redes sociais. Nele, se vê uma cena onde, durante uma discussão no Paraná, uma mulher chama um policial militar preto[2] de “negão” e é, por isto, algemada e colocada dentro do camburão da viatura. Em poucas horas já havia milhares de comentários que julgavam os dois protagonistas do vídeo. Pelo pouco que acompanhei nos tribunais do instagram e facebook[3], notei que embora espalhafatosos, não eram muitos aqueles que defendiam a mulher que fora presa e/ou negavam a prática discriminatória exposta no vídeo – o que me parece positivo. A maioria, pelo que vi, defendia que a mulher do vídeo deveria ser responsabilizada por sua conduta, ou simplesmente punida. Entretanto, a responsabilização penal desta senhora, embora necessária, não excomungará o racismo do nosso país tropical. Nem mesmo a responsabilização ou punição de todos aqueles que se comportam como ela o faria. Vejamos o porquê nos próximos parágrafos, que pretendem propor reflexões acerca do racismo, demonstrando a relevância deste debate para a sociedade brasileira e centrando a discussão em como compreendê-lo para, assim, poder enfrentá-lo.

Provavelmente, se minha intuição não me falha, alguém em algum lugar do grande Brasil está, neste momento, comentando “Onde já se viu… Agora não se pode mais chamar o amigo de negão… Tem que chamar de afrodescendente. Malditos direitos humanos”. Para estes, inocentes ou mal-intencionados, é mister lembrar que não se trata “apenas” da expressão “negão”. Trata-se da expressão “negão” inserida em um contexto, onde a emissora certamente a utilizou com uma conotação ofensiva – como podemos assistir no vídeo. Chamar o outro de “negão” em uma discussão consiste em uma tentativa de impor a outra parte um papel de submissão, de inferioridade. Um ato de discriminação e uma tentativa de constrangimento evidente.

Aliás, chamar outro de “negão” e suas derivações (inclusive de gênero) em situações distintas daquela apresentada no vídeo também se configura como um ato discriminatório, embora não tão explícito. Se você não é muito íntimo de alguém, por que irá utilizar a cor da pele dele (a) como referência para se referir a ele (a)? Diante de tantas outras características que certamente a pessoa possui, por que escolher a cor? Por que a cor é tão importante? O que será que ela representa para ser justo esta a característica escolhida para identificar alguém? Outro exemplo que deixa evidente que nem sempre as ações discriminatórias são explícitas é a famosa expressão: “Que negro (a) bonito (a)! ”. Por que não “que pessoa bonita”? É preciso enfatizar que apesar de ser preto, aquele alguém é belo. Provavelmente quem já repetiu ou presenciou a situação supracitada não imaginou que se tratava de uma ação preconceituosa, mas foi.

Entretanto, o racismo não consiste em uma falha moral, individual. Tratá-lo nestes termos apresenta limitações para o seu enfrentamento. Neste sentido, questionar-se sobre o que é o racismo e por que ele existe é central para avançarmos no debate sobre a questão racial. Mas primeiro, um breve parêntese. Certa vez, conversando com uma amiga, revelei que tinha um leve grau de daltonismo e que, portanto, não conseguiria identificar a cor exata de um objeto que observávamos. Ela, surpresa, indagou – “Como assim? ”. Respondi de forma direta: “Nara, assim como há pessoas que enxergam a realidade sem opressões de classe, gênero e raça, eu também não consigo ver algumas cores. ” Ela riu e entendeu, de fato, minha limitação. Deste breve diálogo, retira-se a lição de que construímos – com o auxílio de aparelhos ideológicos como a mídia, e portanto esta construção nunca é um empreendimento individual –, enquanto seres humanos, concepções através das quais enxergamos o mundo. Entretanto, a realidade existe concretamente, independente de como a compreendemos (ou vemos). O fato de um daltônico enxergar o rosa como branco não torna o rosa branco. Negar o racismo também não o faz desaparecer. Pelo contrário, o reforça, e por quê?

Para responder esta questão, retomemos as questões postas no início do parágrafo anterior: o que é o racismo e por que ele existe. O racismo consiste na hierarquização entre seres humanos por alguma característicmeritocraciaa, seja ela cultural, religiosa ou corporal (como a cor da pele). No caso brasileiro, o que salta aos olhos é que o racismo traduz-se em um fenômeno marcado pela hierarquização entre brancos e pretos, e todos os traços culturais, estéticos e religiosos que representam a matriz afrodescendente. O preconceito e a discriminação são, neste sentido, expressões do racismo, que tanto tem origem nele quanto contribuem para cristalizar ainda mais o racismo como uma variável determinante das relações sociais brasileiras. Entender o racismo nestes termos implica afirmar que há uma estrutura – notadamente política, econômica e cultural – que apesar de externa aos sujeitos, exerce poder sobre eles e impõe ao povo preto, em termos gerais, uma condição de subordinação e precarização. E implica, por fim, compreender que embora o racismo seja nocivo para a população preta, pode sim haver pessoas pretas que neguem a existência do racismo e até assumam posturas preconceituosas e discriminatórias. É o caso do daltônico que vê a realidade distorcida. Em Os estabelecidos e os outsiders, Nobert Elias demonstra com cuidado como o estigma social imposto a um grupo costuma penetrar nos membros deste grupo ao ponto deles mesmos se enxergarem como inferiores. Situadas as bases conceituais que orientam a compreensão proposta sobre racismo, resta responder – antes de responder por que negar o racismo o reforça – por que ele existe.

Durante mais de trezentos anos, o modo de produção brasileiro se baseou na escravidão, que tinha como mão de obra a população negra. Portanto, a primeira classe trabalhadora do Brasil foi escrava, composta por africanos que, destituídos de sua humanidade foram submetidos à condição de mero objeto. Em 1888 – apenas 128 anos atrás, vale ressaltar –, o Brasil se marca na história como o último país das Américas a abolir a escravidão, sem que houvesse, entretanto, nenhum projeto de indenização à população negra por parte do Estado brasileiro. Pelo contrário, havia a lei nº 601 de 1850, que impedia ao povo negro adquirir terras. Dadas as condições em que a abolição fora realizada – sem alterar o padrão de relação social, mantendo os negros sob a sujeição dos brancos – e a política de embranquecimento que permitiu a entrada de milhões de europeus no Brasil, não havia espaço para a população negra na sociedade de classes brasileira e na República que surgira em 1889. Quer dizer, o padrão racista era – e ainda hoje é – útil para a lógica do capital, pois impele ao trabalhador preto disputar as funções de menor prestígio social e/ou exercer as mesmas atividades que trabalhadores brancos por um salário menor. Portanto, o racismo, tal como é experienciado no Brasil, existe porque a formação do Estado brasileiro teve como um de seus alicerces a escravidão e não houve algum esforço significativo para que este padrão de relação social fosse suprimido. “Mas isso aconteceu há 128 anos, ninguém que foi escravizado está mais vivo”. Exato, ainda assim, somos herdeiros de patrimônio histórico, cultural e material, e os frutos do passado são fantasmas que assombram o presente. Vejamos alguns exemplos que nos ajudam a compreender o racismo enquanto estrutura:

1) Júlio Jacobo, no Mapa da Violência 2016 mostra que do total de 39.699 pessoas (com cor identificada) mortas por arma de fogo em 2014, 29.813 eram pretas ou pardas, o que representa 75,09% do total. Diante deste dado, um questionamento se faz necessário: se a população preta e parda do Brasil representa 53,6% da população total (de acordo com a projeção do IBGE para o ano de 2014), por que estes representam 75% das vítimas de homicídio por arma de fogo?

2) De acordo com os microdados da PNAD (IBGE), em 2012, a remuneração média da pessoa branca era de 1.477 reais, enquanto que a da pessoa preta e parda era de 850 reais. A desigualdade de remuneração entre pretos e brancos (627 reais) mostra uma das várias expressões da desigualdade social, aquela que diz respeito à apropriação da renda. Por que há essa abissal diferença?

3) E quantos dos 513 deputados federais eleitos são pretos? Quantos dos 81 senadores são pretos? Por quantos médicos pretos você, leitor, já foi atendido? Quais os quadros profissionais que recorrentemente vemos pessoas pretas ocupando? Por quê?

Negar o racismo significa naturalizar aquilo que não é natural – a baixa remuneração, a sub-representação no parlamento, o extermínio da população preta nas periferias.  Afirmar que o racracism-doesnt-exist-in-brazil-december-6-2013-2ismo não existe é um discurso ideológico que contribui para culpabilizar os sujeitos e encobrir que as dimensões supracitadas são produtos da história e das relações políticas. Os discursos que negam o racismo apenas o reforçam pois fazem crer que a população preta ocupa determinada posição social porque é, naturalmente, inferior, e não porque as relações sociais estabelecidas ao longo da história contribuíram para que ela, em termos gerais, ocupasse as bases da pirâmide social. Como escreveu Karl Marx no início do 18 de Brumário, “os homens fazem a sua própria história, contudo não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. ”

Insultar um jogador de futebol de macaco ou o policial militar de “negão” são algumas das expressões do racismo, mas nem de longe as únicas. Para combater efetivamente o racismo, a indignação não deve ser seletiva. Durante séculos a renda média da população branca é maior do que a da população preta; há incontáveis anos jovens pretos são assassinados nas periferias pelas mãos da legislação proibicionista, do crime organizado e da polícia militar; a mídia de massas insiste em retratar a população preta em uma condição de inferioridade ou, quando a coloca em uma posição de prestígio faz questão de criar personagens como Mister Brown – milionário por seu sucesso como cantor de axé que vive em um condomínio de classe alta e incomoda a vizinhança pelas suas práticas, levando o telespectador a crer que a personagem não se adapta aquele lugar da elite, que não é seu – ou o Foguinho da novela Cobras e Lagartos – personagem que ascende socialmente após receber uma herança.

Ainda assim, mesmo convivendo cotidianamente com o racismo, o debate sobre este fenômeno só ganha corpo com algumas situações isoladas, o que é bom, mas não suficiente. Parece que mesmo com parcela substancial da população preta cativa nas bases da pirâmide social, mesmo com o extermínio da população preta, o racismo no Brasil apenas existe quando situações de discriminação explícita como a do vídeo acontecem. Enfrentar o racismo no plano simbólico é indispensável para se travar uma luta antirracista, mas não se pode perder de vista as outras dimensões supracitadas, que são, por vezes, tomadas como normais, naturais.

[1] O vídeo pode ser acessado através do seguinte endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=lffRSdcmbM4

[2] Ao longo do texto, utilizaremos a expressão preto (a) e não negro (a) para fazer menção aos homens e mulheres africanos (a) e seus (a) descendentes, sejam eles (a) pretos (a) ou pardos (a). Por referência etimológica, o termo negro será utilizado apenas quando estivermos fazendo menção ao povo preto escravizado. Também se faz importante destacar que, embora não se adote a perspectiva de que a espécie humana é dividida em raças, o termo questão racial é empregado em referência a um fenômeno social, o racismo.

[3] Em referência ao álbum Tribunal do feicebuqui, lançado em 2013 por Tom Zé.

Gabriel Miranda

Cientista social (UFRN), mestre e doutorando em Psicologia, também pela UFRN. Pesquisador associado ao Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência (OBIJUV).

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