Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 4 de março de 2011

Nas mãos da borboleta, entregue às moscas: um olhar ciclístico sobre Natal…

 

Anteontem – 02 de março – resolvi agir contra o meu semi-sedentarismo: fui pedalar pela cidade, saindo da Zona Norte pela ponte Newton Navarro e voltando para casa pela “ponte velha”. O que me permitiu não apenas contemplar belezas naturais entrecortadas pelos antigos e novos hotéis, como também ver o descaso e abandono com o qual nossa bela cidade está entregue. Sem dúvidas, é em cima disso que se baseia o título dessa matéria, mas é importante ressaltar que o que vemos atualmente em Natal não pode ser ingenuamente apontado como um problema surgido com a atual prefeita, mas, antes, como fruto de um processo histórico que se arrasta algum tempo, e que, em sua administração, foi ainda mais evidenciado por causa de sua incompetência e displicência.

Em primeiro lugar, pode-se dizer que andar de bicicleta por Natal talvez seja uma aventura tão radical quanto andar nos claustrofóbicos ônibus da capital ou nos velhos ônibus que nos levam para o Seridó. Não existem ciclovias e algumas avenidas, como a “estrada da Redinha”, exigem do ciclista uma considerável habilidade de pedalar por espaços mínimos. Tal aventura ciclística só é amenizada quando pedalamos pela Via Costeira, no entanto ali, ao contrário do que a prefeitura pode dizer, não existe uma ciclovia. Esta foi destruída, e diante das reclamações resolveram transformar metade da calçada em ciclovia. Bem, pedalar pelo asfalto, definitivamente não é a mesma coisa do que pedalar em uma calçada… Mas, sem duvidas, essa não é a parte mais desagradável do passeio…

Não entendo nada dos tramites burocráticos. Mas sou incrédulo com relação as autorizações concedidas pelo IBAMA estadual. Por outro lado, penso que qualquer ação humana interfere na natureza, só que diante das urgências atuais essa interferência poderia ser feito com mais equilíbrio e sensibilidade. Durante a pedalada, vi grandes blocos de areia da praia cortados, deixando espaço aos alicerces que ali serão lançados. Em um desses lugares, observei uma cena interessante: uma pequena e velha casa onde reside uma família ao lado de um desses blocos. Nesse mesmo instante, estacionava um carro, provavelmente de sócios ou engenheiros responsáveis pelo suposto novo hotel. Conversavam e andavam por parte do terreno, olhando para a parte cortada, como se estivessem discutindo alguma coisa. Um senhor, morador da casinha, saiu com um filho pequeno, olhou por alguns segundos para os dois distintos senhores e se fechou em casa novamente. A cena me pareceu emblemática da nossa desigualdade.

Continuando o passeio, observei como aquela área é bem policiada; a mesma dispõe de dois postos policiais, sem falar nas viaturas com as quais cruzei ao longo do caminho. Cenário semelhante foi percebido ao longo da Roberto Freire até a entrada para o conjunto dos Professores. Não que seja ruim o policiamento em si, mas ao chegar a bairros de periferia como Nova Descoberta e Quintas (este último sempre apontado como tendo um alto índice de criminalidade) o que percebemos é a quase ausência de policiamento.

Enquanto na Zona Sul da cidade, podemos ver durante o dia inteiro um desfile de viaturas policiais, que se intensifica durante a noite, protegendo principalmente estabelecimentos privados, nos bairros de periferia este número é bem menor. Por que será? Tal desproporção estaria relacionada com o poder aquisitivo predominante nesses bairros? Seria o preconceito de classe naturalizado nas ações dos nossos governantes? Ou a prioridade dada à proteção do turista? Existem várias respostas possíveis.

No entanto, para as perguntas acima a resposta é uma só: SIM! Não sou contra a existência da polícia, tendo em vista que representa que o monopólio da violência deva estar nas mãos do Estado. No entanto, defendo que isso deveria ser feito sem distinção de classe. Coincidentemente nos bairros e favelas onde isto ocorre de maneira precária, a violência, seja doméstica ou na rua, parece aumentar consideravelmente. O que não implica dizer que o primeiro tipo não ocorra entre as classes dominantes. Ocorrem sim, mas não vem a público, já que são formadas por grupos preocupados em manter uma imagem de família de comercial de margarina.

Voltando ao trajeto ciclístico, nada foi tão contrastante quanto passar pelas casas enormes do Conjunto dos Professores em Capim Macio e depois ver as várias famílias morando nas ruas. Uma dessas me chamou a atenção por estarem debaixo do viaduto da Zona Norte, na Tomas Landim. Ali um grupo de mais ou menos seis pessoas se instalaram, organizando o espaço tendo, inclusive varal para suas roupas, lavadas em um bica ali próximo. Não se trata de uma cena bonita. A pobreza é um flagelo compatível apenas com o capitalismo neoliberal de nossos tempos, que aponta alguns como merecedores, e portanto aptos a usufruírem de direitos básicos, como habitação, e outros como indignos, pré-cidadãos como chama a antropóloga Mariza Peirano ao se referir a população pauperizada, ainda predominante em nosso país, em parte porque há uma compreensão tácita de que não contribuem com o mercado, não são úteis.

Outro cena bem interessante, essa me deixou bem satisfeito, foi ver um grupo de ciclistas em frente ao IFRN próximo ao Midway, se concentrando para fazer um passeio-manifesto, a Bicletada Natal: um carro a menos. Apesar de não ter participado, fico feliz pela iniciativa, e vejo nela não apenas a possibilidade de diminuição dos carros pelas apertadas avenidas natalenses, mas uma possível crítica ao exorbitante e descabido preço das passagens nos ônibus. Sobre isso foi curioso ver a declaração de um representante da prefeitura com respeito ao assunto. Ao ser questionado por um repórter sobre a possibilidade de se voltar a já abusiva tarifa de R$ 2,00 ele cinicamente respondeu: “Nós seguramos o aumento por dezoito meses”. Mais uma resposta ridícula por parte do secretariado de Micarla de Souza. Só para termos um parâmetro de comparação, por contraste, em Recife, um dos lugares com melhor transporte público e integração que conheço, a tarifa permaneceu sendo R$ 1,85 durante quatro anos, passando ao valor de R$ 2,00 no início desse ano. O que não ocorreu sem protestos por parte da população.

Certamente o natalense não tem “sangue de barata”, exemplar nesse sentido são as manifestações que como essa ou a realizada por estudantes e trabalhadores de diversas áreas na semana passada. Mas é necessário que isso seja demonstrado com mais vontade, com mais gente ocupando as ruas aliadas aos órgãos competentes, como o Ministério Público, por exemplo. Ora, as transformações prometidas pela borboleta ocorreram, mas para pior, e, aliás, em uma cidade que já vinha há muito sendo entregue às moscas. Planejamento e organização no desencadeamento de ações efetivas por parte da sociedade são urgentes para que, assim, mostremos às autoridades que não compartilhamos da vida insetária, isto é, que não temos sangue de barata…

Gilson Rodrigues Jr

Bacharel em Ciências Sociais (UFRN) e antropólogo - mestre e doutorando pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi professor substituto da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde permanece ministrando aulas no curso de Ciências Sociais (EAD). Tem experiência nos seguintes temas: desigualdades, marcadores sociais da diferença; remanescentes de quilombo e antropologia do direito/ jurídica. Atualmente se dedica a estudar no processo de doutoramento a interface entre ações humanitárias, Estado e religião,

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