Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 31 de janeiro de 2012

MMA: Esporte, violência e capitalismo

postado por Alyson Freire

 Depois da 142º edição do UFC, realizada no Brasil, lotar a HSBC Arena, não cabe dúvida, o MMA (sigla, em inglês, para Artes Marciais Mistas), o antigo vale-tudo, é o esporte do momento. Sua popularidade, lucratividade e publicidade atingem patamares próximos ao mundo do futebol. Tal como os grandes jogadores de futebol, seus principais lutadores são profundamente midiatizáveis; tratados como verdadeiros ídolos pelos fãs e como excelentes “marcas publicitárias” pra campanhas de marketing de produtos e mercadorias variadas. Não à toa que, nos Estados Unidos, o MMA derrotou o outrora glamoroso e clássico boxe, “a nobre arte” dos esportes de luta modernos. Tornou-se, então, nos últimos tempos, uma verdadeira febre mundial e uma das mais lucrativas indústrias no mundo dos esportes.

 No entanto, como quase tudo na vida, o Mixed Marcial Arts (Artes Marciais Mistas) não é unanimidade. Seu sucesso é acompanhado por críticas e desconfianças. Questiona-se seu estatuto como esporte, suas consequências lesivas ao corpo e seu poder de influência negativo junto ao público. Para uma porção considerável do público, trata-se de uma modalidade esportiva repleta de imagens bastante fortes: sangue, hematomas, fraturas e desmaios provocados por chutes, joelhadas e socos fortíssimos e certeiros, estrangulamentos. No Brasil, em particular, a resistência e desconfiança sobre o MMA já chegou, inclusive, no campo da política. O deputado federal José Mentor, do PT-SP, elaborou um projeto de lei cujo objetivo consiste exatamente em proibir a transmissão, não importa o horário, de lutas marciais não-olímpicas na televisão, no caso o MMA, entre elas.

Se observarmos com um pouco de atenção o MMA, em especial, o entusiasmo de seus fãs com as lutas, é interessante notar como parece estar em jogo uma mudança ou variação de nossa sensibilidade a propósito da violência. Explico-me: a violência que tanto tememos e repudiamos na vida cotidiana transforme-se no interior deste espetáculo de entretenimento em algo extremamente sedutor, fascinante e mobilizador. Diante do qual nossas reações rotineiras transformam-se, dessa vez, em excitação, empolgação, torcida, apostas e diversão. Em síntese, em lazer, fruição e passatempo. Imagens sangrentas e ferimentos cuja visão, na vida diária, nos fariam facilmente desviar o olhar noutra direção ou nos causariam profundo mal-estar e repulsa, no Octógono, ao contrário, geram brados exultantes de deleite, urros e pulos de alegria, êxtase.

 Como, então, compreender tal ambiguidade da violência ou a variação de nossa sensibilidade e percepção a seu respeito? Ou melhor, como explicar o poder do MMA e outros esportes de combate em metamorfosear nossas reações habituais em relação à violência e à ferocidade, isto é, enxergar estas últimas duma maneira completamente distinta da convencionada no cotidiano?

 Diferente do que se pensa a resposta não radica na banalização da violência, na satisfação de pulsões primitivas do homem ou no suposto regresso do laço social à condição de barbárie. A resposta a essa inquietante pergunta está onde menos se imaginaria encontrá-la: no elevado grau de civilização que atingimos.

 Evidentemente a maneira como vemos e sentimos as coisas varia segundo as situações ou contextos nos quais atuamos e interagimos. É óbvio que as pessoas sabem que a violência que ocorre no Óctogano não é da mesma natureza daquela que assola as grandes cidades, seja em crimes ou acidentes. É um esporte, dirão. Porém, o que essa explicação contextualizada não explica é que para pensarmos a violência como legítima, permitida e aprazível segundo a sua inserção e espaço, ela necessitou de uma história, de um conjunto de processos de mudança que nos inculcou tal sensibilidade e percepção. Não são simplesmente os contextos em si mesmos mas os processos históricos e sociais que formaram os modos de sentir e avaliar das pessoas e que criaram os próprios contextos e atividades dentro dos quais, como o esporte, a força e a agressão físicas são consideradas legítimas e permitidas.

 Nossa capacidade de relacionar-se com a violência como um meio de lazer e passatempo, como uma atividade de excitação e fruição, como parece sugerir o MMA, é, na verdade, uma conquista civilizatória, uma evolução, se quiserem, de nossa sociedade. Ela é fruto do processo que culminou no que orgulhosamente chamamos de condutas, comportamentos e relações civilizadas.

 Um dos grandes sociólogos do século XX, Norbert Elias captou essa importante ligação entre o surgimento do esporte moderno e a pacificação das relações e tensões. Durante muito tempo, a violência e a utilização da força física foram atributos livres de qualquer regulação externa. Nas sociedades modernas, no entanto, e o esporte é ao mesmo tempo um sintoma e uma contribuição a esta ideia, o exercício da violência e o uso da força física devem se submeter a regras e a leis que prescrevam seus espaços, formas e limites autorizados.

 Numa sociedade regulamentada em várias de suas atividades, o esporte moderno surge como uma invenção capaz de liberar tensões e emoções sob uma forma pacífica e regrada, isto é, de extravasá-las de maneira controlada e sem maiores riscos por causa da vigilância e predisposição que ele implica na obediência de regras que estabelecem os limites da força física e da violência empregadas no jogo ou contra o adversário. De uma só vez, com o esporte, temos, por um lado, uma fonte de excitação e de liberação das emoções e tensões capaz de aliviar as cobranças e pressões sociais desgastantes conferindo-lhes novos objetos e ligações, e, por outro, um impulso civilizador de autocontrole dessas mesmas emoções e tensões graças a disposição de respeito às regras formalizadas e uniformes que codificam as condutas permitidas e não-permitidas dos indivíduos.

Visto por essa ótica, os impulsos agressivos e tensões dos atletas convertem-se em autocontrole e disciplina. Não são brigadores de rua que se engalfinham uns com os outros movidos por ira, vingança e descontrole emocional. Pelo contrário, neles  sobressaem a concentração e a frieza.

 Quanto ao público, podemos afirmar, na esteira das ideias de Elias sobre a esportização e seu papel civilizador, que o MMA proporciona um deslocamento do prazer experimentado em praticar a violência para o prazer de ver/consumir a violência cumprir-se. O prazer não é fruto do gozo com a pura e bruta violência, mas deriva da excitação com o jogo que se desenrola no equilíbrio tenso entre a força dos atos e dos golpes com a força da lei. No público consumidor os impulsos agressivos e tensões transformam-se em fruição, excitação e prazer. Em ambos, temos um redirecionamento e transformação qualitativa do foco e da energia da violência. Eis aí, uma importante contribuição dos esportes ao estilo do MMA.

 Porém, se quisermos levar à sério o MMA como objeto de análise, há, por último, um elemento a que deveríamos indagar se tal não desestabiliza em alguma medida essa relação entre esporte e pacificação/sublimação da violência que aqui traçamos. Afinal, no coração do MMA pulsa a motivação que impulsiona todo empreendimento capitalista; a busca impiedosa e incessante por lucro. Os lutadores não são apenas atletas. Eles são também mercadorias vivas feitas de carne e sangue, como diria Loïc Wacquant a propósito dos boxeadores, cuja força e técnica do corpo são instrumentalizadas pra gerar o máximo possível de dinheiro, com patrocínios, cotas de TV, consumo, empresários, propagandas, etc..

 A questão que resta perguntar é se no MMA as regras e técnicas, seu impulso civilizador, prevalecem sobre o ímpeto do lucro, e, assim, saber se ele oferece não o melhor combate mas o melhor espetáculo do ponto de vista da busca impiedosa pela maior e mais lucrativa capitalização econômica.

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Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

9 Responses

  1. Bom texto Alyson!

    Acho que uma coisa que sempre temos que ter em mente é (papo de biologo) a espécie é a mesma! por mais que tenhamos evoluido na construção socio/cultural da sociedade a espécie é a mesma! O homem que entrava em estase nas arenas da Roma antiga é o mesmo de hoje. As necessidades são as mesmas, mascaradas por uma conduta social diferente, mas as mesmas.

  2. Max disse:

    Parabéns à Carta Potiguar, com sua nova versão.

    Antes estava bom, agora ficou ainda melhor.

  3. Thaíssa disse:

    Gostei, demais do texto Alyson. E há muito tempo esperava ler algo do tipo, em alguma parte. Há um tempo o esporte me chamava a atenção. Hoje em dia acho que talvez eu seja a única pessoa que conheço que não aprecia o esporte. Eu infelizmente quando vejo as cenas sinto-me toda dolorida, literalmente (mas isso não vem ao caso).

    Questionava demais aos amigos, que prazer é esse, em apanhar… mesmo que se ganhe muito com isso. Me lembra algo de uma natureza sadomasoquista. Enfim, eu particularmente não aprecio.

    Me chama a atenção no texto, quando você fala que “repudiamos a violência na vida cotidiana”, mas acho que essa violência das ruas, também se coloca hoje do lado do espetáculo. Em nossos tempos, um corpo estirado ao chão, após uma briga, acidente, ou seja lá o que for, reúne muitos espectadores, que se deleitam com aquela cena. E óbvio, quanto mais sangue tiver presente, melhor se é de se ver, mais “sedutor, fascinante” como você coloca quando fala do esporte.
    Imagens sangrentas da vida cotidiana, chamam “nosso” olhar. Lembro de um site que conheço, em que é publicado alguns acontecimentos da região. Esse site bate recordes de visitas quando relata alguma morte ou acidente, trazendo fotografias detalhadas do acontecimento. Quanto mais sangue, mais destruição, mais visitantes.

    O sofrimento humano é algo bom de se ver. E quando este é real então… Talvez o “público” preferisse ver essas cenas reais, mas como seria demasiado perverso, talvez contentem-se com esses homens que aceitam (a troca de muito dinheiro), jorrar seu sangue para divertir esses outros, sedentos do sangue e da dor alheia.

    Talvez eu tenha fugido um pouco, mas enfim, é um tema que me interessa bastante!

  4. Maiara Gonçalves disse:

    Compartilhando do comentário da Thaíssa, eu também não aprecio o MMA. No entanto, gostei da forma de como você o toma como objeto de análise percebendo as questões que existem por trás desse esporte. Até o presente momento, não tinha lido nada do tipo!
    Parabéns pelo ótimo texto, Alyson!

  5. Alyson Thiago disse:

    Obrigado pelos comentários! Fico feliz que vocês tenham gostado do texto, pois minha intenção principal era justamente, como Mayara bem percebeu, sugerir que há no MMA aspectos intrigantes à reflexão e à análise. Parafraseando a antropóloga Mary Douglas, diria que o “MMA serve pra pensar”. 

    Thaíssa levanta um ponto interessante ao texto: por um lado, penso, reforça a ideia do texto acerca da variação da sensibilidade em relação à violência e, por outro, sugere uma outra chave de interpretação do problema com qual me debati no texto, qual seja: o que explica que a violência no cotidiano, que, via de regra, incita medo, repúdio e mal-estar transforme-se em fonte de excitação e entretenimento nos esportes de luta. Essa chave, se entendi corretamente o seu comentário, seria a perversão.

    Nesse sentido, o MMA seria uma forma de identificação perversa, sobretudo para o público. Um avatar perverso no qual a expressão do desejo cuja satisfação é mais ou menos interditada no cotidiano poderia se manifestar e gozar sem maiores contradições ou má-consciência. É uma chave explicativa possível e interessante. Porém, penso que sua eficácia radica mais na relação subjetiva do público-consumidor com o que seria o seu objeto (a luta, a violência, os lutadores). Há, contudo, alguns limites que me fizeram não optar por essa via.

    Um deles é que a formação da economia do desejo da perversão como posição subjetiva, até onde minha memória ajuda, sustenta-se decisivamente na busca irrefreável de realizar o gozo, quer valendo-se da transgressão ou do fetiche; a lei, as interdições ou forças inibidoras ligadas à moral, educação ou repugnância são ultrapassadas ou contornadas pelo fetiche, idealização, supervalorização do objeto, etc.. Isto vai, portanto, no caminho inverso do impulso civilizador, na orientação do agir e formação duma economia psíquica baseada na transformação das coações externas em autocoações, clara nos casos dos atletas e sua relação com as regras. 

    Um outro ponto consiste justamente na historicização do processo de formação dessa economia psíquica particular. No caso da perversão, não são tanto os processos sociopolíticos (centralização estatal, monopólio da violência, estratificação e maior interdependência de camadas sociais distintas) o aspecto central da formação de sua economia psíquica particular, como em Norbert Elias, mas os processos intersubjetivos de desenvolvimento do “eu” ligados ao Édipo e ao desenvolvimento sexual, que, embora presos ao sistema de suas representações e normas relativas à linguagem e à cultura como princípio regulador são, em Freud ou Lacan, razoavelmente analisáveis sem referência à história e seus processos de mudança de larga escala. Enfim, seria mais ou menos por aí minhas ressalvas ou os possíveis limites, a meu ver, da perversão como chave de interpretação do MMA. Abraços,

    .

  6. Adriano disse:

    I LOVE MMA!!!!

  7. Delmisom disse:

    eu acho isto uma loucura e prova que o ser humano não evolui,comete o mesmo erro de 6000 anos  atrás

  8. Ppedroalleida disse:

    mas e a questão do aumento de jovens que hoje fazem artes marciais pura e simplesmente para que estes façam um pequeno torneio com os amigos um torneio ilegal e muitas vezes sem regras e sem juiz. tudo isso causado pela influencia da mídia, do mma, que é transmitido de uma forma violenta e não de uma forma como esporte.

  9. Anonima disse:

    Parabéns pelo texto ,muito interessante. 

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