Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 24 de fevereiro de 2012

A queima do Alcorão e o direito à profanação

postado por Alyson Freire

A queima do Alcorão, na última terça-feira, 21, por soldados americanos no Afeganistão não apenas causou entre os afegãos revolta, como desencadeou no país uma série de manifestações e protestos acalorados e violentos. Certamente, podemos pensar, foi um ato de desrespeito e um ataque moral dos soldados americanos, cuja indignação e sentimento de infâmia gerados são ainda maiores por se tratar de tropas estrangeiras que ocupam o país.

Alguns anos atrás, por ocasião de uma midiática e interesseira campanha de promover o Dia Internacional da queima do Alcorão, capitaneada pelo pastor Terry Jones dos EUA, escrevi um texto cujos argumentos retomo por crê que eles ainda são válidos ao meu propósito.

Não é do desrespeito ou da intolerância norte-americanas que aqui quero abordar. Minha questão será de outra ordem. Não se trata, em última instância, de decidirmos se apoiamos ou rejeitamos tais atos e condutas em si mesmas; qualquer um com o mínimo de bom senso reprova a infantilidade e estupidez dos soldados americanos ou daquele pastor, que, gratuitamente, só fazem acirrar os ânimos e alimentar o ódio sobre um conflito bastante sério, e que vá além de uma guerrinha de isqueiro, papel, bandeiras, bíblias e Corão.

A questão que eu gostaria de colocar diz respeito às implicações da postura profanadora diante do sagrado que o episódio, para além das motivações e consciência dos participantes, levanta. Por suas implicações involuntárias, e, digamos filosóficas, sustento um direito à profanação. É sobre seu aspecto geral que gostaria de escrever.

Queimar livros são atos de barbárie, dirão. Um desperdício e atentado à cultura. Ainda mais, livros como Corão e a Bíblia, de reconhecido valor poético e literário. Mesmo sendo, digamos, agnóstico e anticlerical, me deleito com a beleza dos versos do livro de Jó ou Jeremias e, como um aluno, silencio diante da sabedoria dos ensinamentos e máximas presentes no Eclesiásticas de Salomão. Pois bem, não defendo a queima em si, nem a eliminação de tais livros. Afinal, as pessoas tem todo o direito de acreditarem em toda sorte de crenças que julgarem críveis ou necessárias em suas vidas. Porém, defendo a postura que subjaz na profanação das crenças, na iconoclastia e heresias.

Evidentemente, muitos se sentirão ofendidos e insultados, e os motivos e as razões dos piromaníacos cristãos ou islâmicos não são lá convincentes nem razoáveis, todavia, ainda que ética e politicamente condenável e estúpido do ponto de vista racional, penso que, ao contrário de algumas propostas, não há que se proibir a queima do Corão ou qualquer livro sagrado.

Em que fundamentar tal disparate, perguntaria o leitor? Na liberdade de expressão? Não, não é nessa premissa sagrada de nossas sociedades liberais que encontro minhas razões para tal ideia.

De um ponto de vista político-filosófico, por assim dizer, a profanação é fundamental. No ensaio “Elogio da Profanação”, Giorgio Agamben, filósofo e filólogo italiano, defende que na ideia e na prática da profanação, assim como da ironia e da paródia, radicam formas de crítica e de ação política que anulam o poder da norma, isto é, do vínculo intocável e improfanável entre coisas, regras e sentido em que tanto a noção de norma como de sagrado repousam e visa garantir. Embora o foco de Agamben seja os dispositivos de normalização da vida nas sociedades contemporâneas, abraço essa ideia da profanação como arma crítica que desativa a norma, e a dirijo contra à noção de sagrado e o poder da religião.

Por meio da profanação restituímos ao uso, ao arbítrio e à racionalidade dos homens o que antes, por engodo e arbitrariedade, pôs-se em separado, numa esfera religiosa e transcendente. A religião e o sagrado são, de uma maneira geral, prescritivas e restritivas, na medida em que afirmam que há coisas, temas e motivos que não cabem aos homens conhecer, discutir, nem intervir, pois eles referem-se a uma outra esfera, aparte da “esfera dos negócios humanos”, para utilizar a expressão de Hannah Arendt. Graças a essa operação de separação, criam-se os “monopólios dos bens de salvação”, as hierarquias entre os que mediam a relação com o sagrado e aqueles que não tem acesso direto a ele. Inventam-se mitos e levantam-se crenças e igrejas pelos quais se mata e se morre.

A noção de sagrado é um das ideias pelas quais se funda a desigualdade entre os homens e o poder de uns (sacerdotes) sobre outros (servos, crentes). Com efeito, a noção de “sagrado” não passa de um artifício cultural. Ela opera no seio das coisas divisões, assim como divide os homens entre representantes do sagrado e cultuadores do sagrado. É por meio dessa operação que funda relações assimétricas entre o mundo das coisas e dos homens que muitas religiões instalam-se como uma forma de dominação e acúmulo de poder . Parodiando a famosa frase do filósofo Rousseau no Discurso sobre a Origem da Desigualdade, eu diria que “o primeiro homem que veio com a ideia de dizer ‘isto é sagrado’ e encontrou gente simples o bastante para acreditar nele, foi o fundador da desigualdade e assimetria entre os homens: guerras, horror e dominação sobrevieram sobre os homens porque não houve ninguém para dizer ‘cale a boca, impostor!’. Da crença e da institucionalização do sagrado derivaram muitas das misérias humanas.

Portanto, a estupidez dos soldados americanos ou a tola extravagância do pastor norte-americano em propor a queima do Corão, ainda que nenhum nem outro saibam disto, suscitam uma atitude de profanação que, em seu simbolismo e efetividade, devolve à esfera humana o que antes estava sob a tirania da interdição, do medo e do silêncio. De sorte que, aquilo que se pretendia manter interditado e em separado retornar à terra e à discussão desmistificadora. Pois as sagradas folhas queimadas não trarão pestes e pragas vindas dos céus, lançadas sobre a terra por um Deus poderoso e irado. Mas sim, talvez, na pior das hipóteses, aviões pilotados por homens enfurecidos e embrutecidos por fábulas ou apenas marchas, cartas e abaixo-assinados. Consequências humanas, demasiadas humanas, e não divinas.

O ato de queimar livros sagrados questiona este tão enraizado sentimento de que há coisas as quais não se pode tocar, que existem coisas diante das quais se deve tirar os sapatos, curvar-se e tolher as mãos para não contaminá-las com nossa imperfeição e sujeira. A profanação não visa ridicularizar o sagrado ou, como intentam o ignorante pregador ou os soldados americanos, ofendê-lo. É está mais além e aquém do bem e do mal. Profanar é um gesto libertador.

A ideia da profanação consiste em exatamente discutir e avaliar ao invés, como faz a religião a partir da noção de sagrado, interditar, velar, resguardar e preservar do entendimento e da ação humana certas coisas e temas. Profanar significa retirar as auréolas e o véu da ilusão para submeter, ou melhor, restituir o que se quer e se pensa como eterno, puro e perfeito à falibilidade e à precariedade humana, que selam tudo quanto existe na esfera dos mortais.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

7 Responses

  1. Ricardo disse:

    Artigo e reflexão instigantes. Melhor combater a religião pela inteligência provocativa do que pelo fundamentalismo ateísta. Parabéns!

  2. doido do pao disse:

    Argumentação pífia. Ridículo.

  3. Felipe Tavares disse:

    Engraçado ler esse artigo agora porque eu estava justamente lendo o livro Humano, demasiado humano de Nietzsche e comecei a ver que aparentemente você se baseia nas ideias dele. Eu realmente concordo que há mitos que a religião formou e congelou e que nós precisamos trazer para o campo da reflexão filosófica para aprofundar o conhecimento humano. Há pouco aprofundamento de questões humanas que as religiões sacralizaram como unicamente julgáveis por Deus, tirando assim o direito do homem dispor delas para seu proveito. Mas precisamos lembrar que Nietzsche estava muito preocupado com a questão do conhecimento e do homem como ser dotado e produtor de saber. Ele assim analisou a filosofia e a criticou em muitos pontos e enalteceu em outros, principalmente qd vinda dos gregos pré-socráticos.Mas com essa preocupação com o conhecimento ele relegou a segundo plano as reflexões sobre política. Nesse ponto é que eu discordo com uma sutileza de seu texto: queimar Alcorões resultaria em muitas mortes, homens-bomba, bombardeios aéreos. É preciso pensar o homem não apenas como ser de conhecimento, mas também como ser social, político e, no nosso caso, religioso. A religião está arraigada nas mentes de muitíssimas pessoas e, naquela região do Oriente Médio, isso parece ser ainda mais forte. Não dá para pensar essa questão sem levar isso em consideração. Explicar a questão apenas pelo simbólico – retirar da religião o pão – é suscitar a possibilidade de, em nome da filosofia, promover mortes! A questão é mais complexa que isso. Outra coisa: Nietzsche era um pensador que baseou suas reflexões no pensamento ocidental. Ele conhecia o budismo por tabela -por Shopenhauer – segundo Viviane Mosé que tem uma tese sobre ele chamada “Nietzsche e a grande política da linguagem”. Então supor a queima de Alcorões seria impor uma ideia formada no pensamento ocidental  a formas de ver o mundo construida de outras maneiras. Seria uma imposição. A antropologia e o relativismo cultural aqui podem ajudar mais que a filosofia Nietzschiniana quando se trata da preservação da vida!

  4. Alyson Freire disse:

    Olá, Felipe

    Bom estabelecer o debate, a intenção é essa.

    Você está correto quando afirma a preocupação de Nietzsche com o conhecimento, o homem com um ser produtor de saber. Porém, o filósofo alemão não concebe o conhecimento como uma atividade isolada. O conhecimento não é simplesmente uma faculdade ligada a nossa capacidade de abstrair e formular e que seria um fim em si mesmo. O conhecimento, na verdade, o próprio intelecto, nossa capacidade de conhecer e formular abstrações e pensamentos, possui duas finalidades pra Nietzsche: por um lado, como conservação do indivíduo na sua luta contra as intempéries da natureza e contra outras espécies mais fortes fisicamente; segundo, o conhecimento é um instrumento de poder e dominação, pelo qual os homens dominam outros homens – a invenção da escrita, das leis, do direito são exemplares neste sentido. A primeira ideia está no ensaio “Verdade e Mentira no Sentido Extramoral” e a segunda está, mais precisamente, em “Além do Bem e do Mal” e “Genealogia da Moral”. 

    Mas deixemos isso pra lá, expus  esses dois sentidos porque discordo de que Nietzsche tenha desconsiderado a política, pelo menos no sentido mais caro à tradição alemã, a política como luta por poder, como imposição de sentidos, valores, interesses com a finalidade de dirigir condutas e impor a vontade de alguns sobre outros. Nietzsche trabalha a política sob a alcunha da moral ou dos valores porque estas são expressões de relações de forças e das relações entre os homens e do homem ou classe de homens consigo
    mesmo (aristocracia guerreira, sacerdotes ascéticos, etc). E aqui o conhecimento como uma atividade criadora de ideias, representações, mitos, fábulas é essencial como instrumento de poder. Se conhecimento é poder, o homem como ser de conhecimento é desde já um animal político e social.

    Voltando ao meu texto, meu objetivo não é tanto explicar as reações ou as intenções de um grupo ou de outro. Nem ponderar soluções para o conflito. Meu objetivo é: pensar, para além do próprio episódio e das motivações individuais, o que a profanação como gesto realiza que a torna, a meu ver,  indispensável como uma forma de crítica à religião. Minha resposta é que ela faz descer à terra, ao arbítrio dos homens aquilo que se alçou, numa operação de poder, portanto, política, como intocável e suprahumano. A
    profanação dessacraliza o sagrado, desmitifica-o, isto é, mostra-o como algo secular, humano, inventado. 

    Não defendo à queima do Alcorão nos sentidos e motivações pelas quais os soldados agiram. Muito menos, levando em conta o contexto político do conflito. Falo isso no texto quando me refiro as consequências “humanas, demasiada humanas” (aviões pilotados por fanáticos, acirramento da animosidade e do ódio, etc..). O que retenho ou extraio dessas conseqüências, o que não quer dizer que as defenda ou as ignore, é que elas são produzidas por homens e levadas a cabo por homens, e não por deuses, ainda que estes estejam
    na cabeça e no coração dos primeiros. E isso pode trazer uma revelação. No final das contas, o que a profanação mostra, e as consequencias violentas e virulentas corroboram numa ironia trágica, é que não são os deuses que são irados, intolerantes e vingativos, mas os homens. 

    Será que diante da matança e do ódio disseminado não perguntaríamos a nós mesmos “é pra isto que serve Deus?”; “Não foi o nosso amor incondicional e irrefletido, nossos deuses e crenças, nossa sacralização de
    certas coisas que acabou por nos encher de ódio?”. Há aqui, sim, uma confessada inspiração nietzscheniana da qual não abro mão, quando o filósofo pergunta: “Quanto de verdade suporta um espírito?”. A meu ver, a
    profanação é um gesto liberador na medida em que revela ao crente uma verdade dura, cruel, dolorosa, mas ainda assim verdade, que, mesmo esmagando e revoltando o seu espírito pode transformá-lo. Abraços,

  5. Daniel Menezes disse:

    Penso que as pessoas devem praticar o seu “direito” anarquista. Mas como um bom liberal, penso que o direito de uma pessoa acaba quando inicia o da outra.
    Queimar uma bíblia pode ser um ato de desobediência civil. No entanto, sei que estarei afrontando outras pessoas.
    Bem, acho que isso não é muito “comunitário”.

  6. Bruno Ícaro disse:

    O poder das religiões é um poder sobre as mentes das pessoas. As mentes são governadas por ideias.

  7. Edson disse:

    Profanar : desrespeitar. Quando a “A ideia da profanação consiste em exatamente discutir e avaliar”, acho interessante, mas quando um ato provoca reações previsíveis de revolta, e pior, reações violentas e perdas de vida humanas, este ato perdeu o sentido, aumentou o radicalismo e adiou qualquer possibilidade de dicussão.

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