Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 5 de março de 2012

Escaneadores corporais: segurança e intimidade

postado por Alyson Freire

Houve tempos em que os europeus tremiam de horror perante a nudez. Inclusive, não custa lembrar, quando por aqui meteram os pés, e principalmente as mãos, escandalizaram-se com o “hábito” dos índios de andarem por aí com as “partes pudendas” à mostra. O que, com efeito, os levou a interrogar o Papa e os sábios da época sobre se aquela gente “despudorada” seria de fato humana.

As tentativas e o risco constante de atentados no mundo pós 11 de setembro, alterou a sensibilidade dos outrora pudicos europeus em nome da segurança nacional. Em muitos dos aeroportos do velho mundo não se viaja sem antes se passar pelo escrutínio das máquinas de escaneamento corporal – os body scanners.  Essas máquinas são capazes de ver através das roupas, de por inteiramente o corpo a nu. Elas desnudam os corpos à caça de artefatos não metálicos capazes de representar alguma ameaça séria à segurança, como explosivos plásticos ou líquidos, que escapam dos detectores de metais convencionais. As ondas eletromagnéticas desse tipo de escaneamento não deixam nada oculto. Os corpos das pessoas são definitivamente postos à nu; suas cicatrizes, próteses, formatos dos seios, genitálias, cavidades, etc.. Holanda, Inglaterra, Itália e França são alguns dos países que dispõem de tal tecnologia de segurança. Os aeroportos dos EUA também utilizam a ferramenta.

 

Imagens no monitor da Siemens. Fonte: El País.

Como era de se esperar, a instalação desses aparelhos indiscretos não ocorreu livre de protestos ou indignações contra os atentados à intimidade e à privacidade. Para vencer as resistências e os embaraços, a tecnologia teve de responder prontamente a esta tensão entre segurança e direito à privacidade. Neste ano, as feiras de tecnologia e segurança na Europa trouxeram aos mais tímidos ou indignados uma novidade alentadora. Os novos aplicativos dos body scanners permitem inspecionar os corpos sem desnudá-los. O corpo concreto e particular de cada um cede o lugar e a vez a uma simulação digitalizada e genérica do corpo humano, que deixa transparecer sem mostrar concretamente todo tipo de material estranho presente ou escondido.

A dificuldade de conciliar os imperativos de segurança e de controle com os direitos à intimidade e privacidade é mais do que a expressão da tensão entre poder e moralidade, ou entre Estado e indivíduo. Ela manifesta as nuanças e os conflitos de negociação entre dois processos centrais no que se refere à fisionomia e à organização das sociedades modernas, quais sejam: a civilização dos costumes e a vigilância dos corpos.

Nossa relação com o corpo e nossa sensibilidade diante de sua realidade ‒ de sua nudez e seus impulsos ‒ são históricas. Norbert Elias enfatiza precisamente que a marcha do desenvolvimento histórico dos hábitos corporais no Ocidente moderno é definida pelo que o sociólogo alemão intitula de “processo civilizador”, isto é, um progressivo incremento do controle e disciplinamento dos gestos, emoções e funções corporais, de seus usos, espaços e formas.

A partir do século XVII, as maneiras de se comportar à mesa, de assoar o nariz, de cuspir, de urinar e de defecar, de se lavar e de copular alteram-se significativamente. Sobre elas, projetam-se fronteiras, regras, silêncios e coberturas, que visam organizá-las restritivamente a fim de evitar à exposição de partes e funções do corpo ao olhar do outro. Assim, as roupas passam a cobrir mais do que mostrar, os odores corporais são dissimulados com perfumes e as necessidades de excreção ganham lugares específicos e isolados. Não apenas os nossos sentimentos tão familiares de embaraço, pudor, vergonha e repugnância relacionam-se, em sua intensidade, forma e origem, com este processo, descrito com brilhantíssimo por Norbert Elias, mas também nossas ideias reivindicatórias de intimidade e privacidade como direitos inalienáveis do indivíduo.

Na outra ponta do processo, podemos recorrer a Michel Foucault e sua história das formas de punição na sociedade europeia dos séculos XVIII e XIX, quando este identifica e analisa um dos traços distintivos do exercício do poder na modernidade: a vigilância.

O corpo é um continente de obscuridades. E, é exatamente nisso que consiste a ameaça. Numa sociedade consolidada como urbana e industrial, formada por um exército de corpos anônimos, imprevisíveis em seus movimentos e impulsos, esses guardam mistérios que podem ameaçar a ordem social. Por isso, as formas e tecnologias de poder, na modernidade, enfatizam a dimensão do olhar, a ótica que lança sobre alguma matéria sua luz a fim de identificar, perscrutar, corrigir e amedrontar. O olhar esquadrinhador do médico sobre o paciente, do cientista sobre o seu objeto, do panopticon sobre seus encarcerados, do professor sobre seus alunos enfileirados, todos eles relacionam-se com essa operação sistemática de vigilância pelo desnudamento que caracteriza o exercício do poder na modernidade.

Os escaneadores corporais, saudados por uns como indispensável e como formidável ferramenta na prevenção ao terrorismo e, abominados por outros como uma tecnologia abusiva de violação da intimidade e como fascismo, carregam traços inextricáveis de nossa história e cultura recentes tanto em seu projeto como no que inspiram. Compatibilizá-los não é, portanto, uma tarefa simples. Na tensão entre um e outro, não podemos aceitar a definição que nos encerra todos ou como suspeitos ou vitorianos pudicos.

A recusa deve ir além em razão das consequências políticas em questão neste tipo de relação estabelecida entre o Estado e os cidadãos. A requisição e mobilização de nossos corpos, dados e informações às perícias, registros e fichamentos do Estado e seus aparelhos de segurança não devem se sobrepor, seja qual for a razão ou justificativa, à requisição de nossa voz e palavra ativa, à vivacidade de nossa agência e participação na esfera de deliberação e decisões públicas. E aqui está em jogo algo além do direito à intimidade e à privacidade. Não permitir que o Estado se interesse mais por nossa epiderme e corpo do que pela nossa inteligência e voz significa limitá-lo ou colocar sob suspeita e negociação o alcance de seus poderes sobre cada um de nós.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

3 Responses

  1. Simpson disse:

    A distopia de Orwell virando realidade. Muito boa reflexão!

  2. Lucasmsn10 disse:

    É uma questão a ser debatida. 

  3. Túlio Madson disse:

    E como o estado nos convence de que seu poder sobre nós, atualmente, é cada vez mais necessário? 

    – Pelo medo.

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