Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 13 de maio de 2012

Em defesa dos movimentos sociais ou a falácia da crítica conservadora

postado por Carlos Freitas

Imagem: sheeron

Em resposta a uma visão que reduz a motivação de qualquer forma de ação social (seja esta individual ou coletiva) a uma mera “vontade de poder” ou “vontade de desejo”, gostaria de contrapor uma outra visão alternativa: um modelo de ação coletiva motivada moralmente, isto é, uma ação social movida por uma “necessidade vital de reconhecimento social” como chave explicativa para compreender os movimentos sociais, principalmente no que se refere a sua fonte moral de motivação da ação política.

Para isso, se faz necessário resgatar a crítica que Félix Maranganha dirigiu de modo geral aos movimentos sociais (feministas, movimento negro, movimento gay, etc.). A todos esses movimentos sociais, Félix atribui o mesmo conteúdo, segundo ele, problemático, o qual gostaria de destacar aqui de modo resumido: o uso de classificações identitárias como parte integrante das estratégias de luta geral por poder e hegemonia, motivação última de todo grupo social, tese esta, defendida por Félix.

Conforme explicitado pelo próprio Félix, a chave teórico-explicativa da real motivação da ação dos movimentos sociais na qual se apoia é a teoria da hegemonia de Antônio Gramsci, intelectual italiano e importante representante do pensamento marxista do início do século XX. E é retornando a Gramsci e sua teoria da ação política que construiremos os primeiros passos de nossa crítica ao ponto de vista um tanto generalista e distorcido de Félix sobre os movimentos sociais.

Gramsci e a ação coletiva como luta por poder e hegemonia

Primeiramente, em Gramsci, como já assinalado por Félix (argumento que concordamos), as lutas dos grupos sociais são sempre interpretadas como lutas por poder e hegemonia. Pelo menos foi assim que Gramsci enxergou como a motivação primeira dos grupos sociais de seu período. No entanto, é importante lembrar, seu principal quadro de referência empírico eram os movimentos operários e os partidos políticos (estes últimos, principalmente) de sua época – final do século XIX e início do século XX. Embora consideremos parcial, é preciso entender que tal interpretação era possível, pois os mesmos movimentos coletivos se encontravam fortemente imersos, não somente nas lutas políticas, mas sobretudo, nas lutas de classificação e definição do sentido legítimo de suas ações. O que significa que a luta política não era travada apenas no terreno da ação prática, mas também no campo discursivo- semântico ou ideológico, onde os intelectuais da época desempenhavam importante papel no sentido de forjar consensos e solidariedades de classe e, consequentemente, justificar MORALMENTE (destaco aqui o pano de fundo moral opaco na interpretação gramsciana da ação coletiva) o engajamento coletivo de grupos coletivos em torno dos ideais de classe. Aliás, sobre esse último aspecto, o sociólogo francês Pierre Bourdieu dizia que uma compreensão mais clara e objetiva da luta de classe não poderia abrir mão de forma alguma, da análise do papel dos intelectuais na produção “real” da classe social, mencionando como exemplo, o próprio Karl Marx e o “efeito de teoria” produzido pelas suas ideias no sentido de contribuir para a construção teórica e prática das classes sociais.

Não obstante, como se sabe atualmente, além do próprio Marx e de Maquiavel, outros importantes intelectuais que influenciaram, ainda que indiretamente, o pensamento de Gramsci foram Gaetano Mosca e Benedetto Croce. Todos estes, compartilhavam os mesmos pressupostos utilitaristas da filosofia social moderna. Onde o modelo de ação política se apoia na mesma visão de luta dos sujeitos por autoconservação. Daí o diagnóstico gramsciano, segundo o qual a ação política de todo grupo social teria como motivação primeira, a busca de poder ou hegemonia de poder.

De certo modo, Félix incorpora o mesmo pressuposto utilitarista da ação coletiva e acaba fazendo um diagnóstico conservador e pessimista dos movimentos sociais. Embora a visão gramsciana, de fato, seja ainda válida para entender a dinâmica da ação social dos partidos políticos na atualidade, o mesmo não se pode dizer a respeito dos “novos” movimentos sociais.

Além disso, o que Félix parece não compreender é que existem diferentes lógicas de ação coletiva – lógica da persecução de interesses (interesses materiais, interesse por status e prestígio); e lógica moral (reação moral e necessidade de reconhecimento, ideais de bem viver) que estão relacionadas ou não à busca por poder e hegemonia de poder. E mais, que mesmo naquelas lutas sociais por poder e prestígio, podemos identificar a necessidade última de estima social, importante marcador simbólico de reconhecimento social.

Portanto, em contraposição ao ponto de vista conservador de Félix Maranganha – e se apoiando nas teorias de Axel Honneth e Charles Taylor, acreditamos que uma compreensão objetiva dos movimentos sociais deve se apoiar também na análise da lógica moral dos conflitos sociais, mesmo dentre aquelas lutas sociais por poder e hegemonia.

A política dos movimentos sociais como luta por reconhecimento

Tratando particularmente da realidade dos movimentos sociais, é nas experiências morais de desrespeito que encontramos a fonte e força mobilizadora da ação coletiva. Por exemplo, a privação de acesso a bens materiais e simbólicos, assim como o racismo de classe dirigido ostensivamente às classes baixas (urbanas e camponesas) devem ser entendidas não em si mesmas, mas como formas de negação da dignidade humana. Um outro exemplo de desrespeito moral é a dominação e a imagem socialmente depreciativa de mulheres, negros, gays e grupos étnicos minoritários. Todas essas formas de não-reconhecimento social produzem sérias lesões morais (auto-estima baixa, auto-imagem depreciativa) nos indivíduos afetados e são paralisadoras de uma autorrelação prática positiva de si. No entanto, quando articuladas coletivamente de modo reflexivo, as mesmas experiências de sofrimento emocional podem se converter em lutas por reconhecimento social.

Nesses termos, se é verdade que as ações políticas de grupos gays, étnicos, feministas e negros são resultantes de experiências de denegação do reconhecimento causada pelo sentimento de desrespeito individual e coletivo. Também é verdade que o engajamento individual e coletivo nessas formas de movimento social, tem por função moral, diferentemente da “busca do poder pelo poder”, possibilitar a saída da condição de rebaixamento moral e resgatar ou constituir uma autorrelação positiva dos indivíduos e grupos sociais.

Dito de outra maneira, a política do reconhecimento que move grande parte dos movimentos identitários contemporâneos representa mais do que o mero desejo de consolidar uma hegemonia de poder – mesmo considerando, é claro,  que a luta por hegemonia do sentido esteja também no horizonte empírico de ação dos mesmos grupos coletivos.  Ainda assim, o que está verdadeiramente em jogo é a exigência reflexiva ou tácita de uma nova compreensão e auto-compreensão da imagem de valor social cultivada pelos indivíduos, somente possível numa relação intersubjetiva de reconhecimento social.

É esse vínculo estreito entre identidade e reconhecimento que o posicionamento igualitarista e universalista de Félix não consegue apreender nas lutas dos movimentos sociais contemporâneos.  Por mais importante que seja, a ideia normativa de que todos nós somos seres humanos igualmente dignos de respeito, tal premissa não se realizará plenamente se não levar em consideração a questão da identidade individual e coletiva. Principalmente em sociedades onde a cultura de autenticidade é parte constitutiva do “self humano”, tal como é nas sociedades modernas ocidentais.  Por fim, é preciso assinalar o potencial de aprendizado moral e civilizatório intrínseco nas lutas dos movimentos sociais, conforme defende o sociólogo alemão Klaus Eder. Ao colocar e atualizar na esfera pública, demandas de reconhecimento, os movimentos sociais instalam debates e processos de aprendizado coletivo sobre o sentido de moralidade socialmente legítimo. Foi esse aprendizado coletivo, por exemplo, que permitiu construir um consenso moral atual sobre a inserção das mulheres e dos negros na educação formal como pré-requisito da cidadania plena. E essa conquista não foi de modo algum, consequência apenas da ampliação de direitos da ordem legal instituída, ou melhor, da aplicação dos marcos presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas o produto de lutas históricas dos movimentos por direitos civis  que levaram à esfera pública e, consequentemente, aos operadores de direito a repensar e amplar o  sentido  de reconhecimento legal. Podemos pegar ainda exemplos mais próximos nós, as recentes conquistas no STF em matéria de reconhecimento legal às mulheres (direito ao aborto, lei maria da penha), às tribos indigenas (reconhecimento das fronteiras e terras indigenas); aos gays (reconhecimento da legalidade da união civil entre pessoas do mesmo sexo).   Todos esses também, frutos de pressões e do ativismo político na esfera pública por parte dos movimentos sociais. É claro que mudanças coletivas envolvem sempre mal-estar e excesso por parte dos movimentos sociais. Mas o que a história das lutas sociais nas sociedades modernas tem mostrado até agora é que, apesar de possíveis recuos, o balanço geral tem sido positivo do ponto vista ético. O Brasil é um bom exemplo disso.

*O texto de Félix Maranganha encontra-se disponível nesse link: https://www.cartapotiguar.com.br/2012/05/09/falacias-dos-movimentos-sociais/

Carlos Freitas

Sociólogo e Professor Doutor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Interesse por temas de Cultura Política e Sociedade. Contato profissional: calfreitas@hotmail.com

2 Responses

  1. felixmaranganha disse:

    Carlos, primeiramente parabéns pelo texto. Como eu disse a Alyson em comentários ao meu texto, você soube refutar o ponto central, algo que respeito muito, porém, vale umas observações. Elas serão necessárias por nos pautarmos em princípios diferentes. No meu caso, uso o argumento ético-lógico da Filosofia. No seu caso, usa-se o argumento geral que é tipicamente encontrado nos cursos de Sociologia. Mas, vamos às ressalvas:

    Primeiro, não citei apenas o “triunvirato” feminista, negro e gay, citei outros movimentos, como o Evangélico, o Vegano, o Humanista Ateu, a Ku Klux Klan, o Nazista, o Masculinista, o Taleban, a Al-Qaeda e vários outros que começaram com motivações inicialmente universais e igualitárias, mas que rapidamente tornaram-se uma busca por hegemonia e exclusão do outro, como você mesmo afirmou ao dizer: “a luta por hegemonia do sentido esteja também no horizonte empírico de ação dos mesmos grupos coletivos”. Ou seja, o que afirmei é que TODO E QUALQUER MOVIMENTO SOCIAL ORGANIZADO (o que inclui Ruralistas, o Social-Cristianismo, o Socialismo e o Movimento Yuppie) possui as mesmas características pelo simples fato de serem formados por humanos.

    Segundo, não afirmei que a motivação primária dos movimentos sociais era a busca por hegemonia, mas que seu discurso universalista e igualitário tornava-se profundamente frágil a partir do momento em que a hegemonia política se tornasse uma possibilidade. Quando falei em corrupção, foi nesse sentido.

    Terceiro, meu discurso está muito distante de um conservador. Costumo dizer que o mundo anda na corda bamba, de tal modo que um extremo da corda enxerga como extremo oposto até mesmo aquilo que está no centro (como explicitei aqui: https://www.cartapotiguar.com.br/2012/03/29/a-sindrome-do-cabresto-ideologico/). Um discurso conservador alegaria a outros princípios que não a universalidade e o igualitarismo que propus no texto, mas lançaria mão de qualquer coisa que aludisse à “ordem natural das coisas”, “vontade de Deus” ou “ordem social”, enfim, o discurso de um conservador é tão distante que costumeiramente eles enxergam meu discurso como libertário.

    Quarto, meu argumento foi ético-lógico, ou seja, apontei as falhas éticas em termos absolutos, e a falha no discurso lógico (por sinal, negligenciado em todas as críticas). Significa que apliquei à organização social os mesmos princípios de análise habermas-hegeliana: 1) entender a sociedade como entidade lógica; 2) entender a história como um processo dialético. O fato de perceber que determinado processo histórico ocorreu não significa que ele seja ético. Enquanto qualquer movimento social busca tão somente reconhecimento e liberdade similar à de outros grupos sociais, é ético, e a partir do momento em que busca reconhecimento e liberdade ao ponto de negar isso a outros grupos, deixa de ser ético. Minha crítica foi nesse sentido.

    Quinto, a visão gramsciana dos movimentos sociais é bastante válida se entendermos um movimento social como um movimento de abstrações. Significa que, a princípio, eu (mestiço, do Haplogrupo L2, de origem angolana, mas de pele clara) não sou diferente em nada de você (cuja foto, por exemplo, denuncia uma pele mais escura que a minha, com traços mistos africanos e indígenas bastante fortes). Se eu considerar minha gradação de pele superior à sua, criarei uma abstração, e usarei isso para buscar hegemonia. Se, em reação, você considerar sua gradação de pele melhor, e criar um movimento pedindo benefícios somente para a sua gradação de pele, então teremos aí a insistência na abstração. Eliminar a abstração seria tão somente fazer com que ambos simplesmente compreendessem que essa gradação não tem importância nenhuma, ou seja, resolver o problema seria desfocar da abstração.

    Enfim, considero muito válida a sua crítica, você escreve muito bem, apenas deixaria essas ressalvas porque meu texto foi reinterpretado a partir de categorias que no mesmo não se encontra, como um discurso conservador, ou, como afirmou um cara no twitter, direitista (e olha que defendo um coletivismo econômico e sou anticapitalismo).

    Abraços,
    Félix.

    P.S.: essa seria uma ótima conversa num boteco, jogando sinuca, rsrs.

    • Calfreitas disse:

       Oi Félix,

      Em primeiro lugar, agradeço pela leitura e posicionamento crítico sobre meu texto, uma óbvia replica ao seu artigo. Embora tenha consciência de que você não parece ser uma pessoa conservadora, isso não significa que esteja livre de marcar posicionamentos conservadores. Isso é normal, eu mesmo me vejo às vezes, tendo atitudes conservadoras e preconceituosas. Compreendo hoje melhor de que não nos tornamos pessoas eticamente comprometidas e responsáveis, sem o contínuo exercício de aprendizado moral diário. Muito mais em concordância com Hegel, Foucault e Honneth do que com Kant e Habermas, acredito que o estatuto de sujeito moral é algo a ser adquirido por da técnica e cultura de si do que simplesmente por tomada de consciência reflexiva, embora essa útima também seja importante, é claro. É nesse sentido que eu destaquei, considero como conservador os argumentos mobilizados por você, segundo os aspectos já explicitados em meu texto. Porque entendedo que você parte de premissas “parciais” sobre a motivação da ação coletiva e sobre o sentido universal de moralidade (demasiadamente descolado da práxis social). Além de desconsiderar diferenças sociais importantes entre movimentos como o nazismo, Kun Klus Klan e os movimento feministas e negro. Enquanto o movimento feminista e o mov negro surgem como reações coletivas às demandas de reconhecimento social, tanto o movimento nazista, o movi masculinista quanto o movimento KunKlus Klan surgiram como tentativas de conservar a condição de hegemonia e dominação por meio da anulação do reconhecimento da alteridade, algo que não se verifica nos “novos” movimentos culturais. Basta observar a constante revisão das categorias de classificação (LGBTTT) adotadas pelos movimentos de liberdade sexual. Eu inicialmente, enxergava esse excesso de siglas como “bobagem” essencialista. Porém, entendo melhor que se tratam de processos de aprendizado auto-reflexivo a respeito do tipo de reconhecimento demandado. Mesmo sociologicamente admitindo a dimensão “construída” de tais identidades, entendo também que são as diferentes linguagens axiológicas e lógicas nas quais as pessoas procuram construir uma auto-narrativa existencial positiva. É essa dimensão prática e sociológica da moralidade que nem Kant e nem Habermas resolveram bem em suas teorias éticas universais…

      Mas como você frisou bem, essa conversa pode render também num buteco, regrado a shopp gelado e jogo sinuca.

      Abração,

      Carlos Freitas.

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