Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 3 de julho de 2012

Amor e Capitalismo, ou a história de um namoro feliz

postado por Alyson Freire

O Dia dos Namorados já se foi. No entanto, mesmo que demasiado tarde ou cedo, podemos, com algum proveito e generosidade, pensar e ponderar algumas coisas interessantes a respeito. Afinal, nessa graciosa, e lucrativa data, se passa algo de mais interessante do que aqueles conhecidos e velhos clichês da ocasião; os presentes, cartãozinhos, caixas de chocolate em forma de coração, poemas, as propagandas bucólicas de casais irreais nas praias, as filas nos motéis e restaurantes, entre outros mais. Com o Dia dos Namorados, mais do que em outros momentos, os discursos, ou menos academicamente falando, as visões que caracterizam e organizam nossas ideias e opiniões sobre o amor expressam-se, não sem eufemismos, nuanças e ambiguidades, de modo particularmente mais enfático e cristalino. O dia dos namorados é “bom pra pensar acerca do que pensamos sobre o amor”.

Neste ponto em particular, pouco importa se celebramos em 14 de fevereiro ou 12 de junho. Ou se o santo devotado aos enamorados é São Valentin ou São Antônio.Há uma cultura ou um conjunto de representações culturais e morais mais ou menos compartilhadas que embalam nossas posturas e percepções sobre o que é o amor, sua natureza, o lugar dele em nossas vidas e projetos pessoais, etc..

Tomemos, como exercício e exemplo, uma atitude típica daqueles cujos corações mais endurecidos e céticos não se entusiasmam com esta data e toda a atmosfera “love is in the air”.

Trata-se da ideia segunda a qual o dia dos namorados não passaria de uma data comercial, inventada e movida para alimentar e aquecer as vendas do comércio em períodos de baixo movimento. Longe de mim discordar do quanto de dinheiro é gerado e movimentado! Mas não é isso que interessa aqui. Vejamos.

A levar à sério essa perspectiva com respeito ao aspecto flagrantemente comercial do Dia dos Namorados, estamos afirmando, com outras palavras, que amor e mercado não se misturam, ou melhor, que não devem se misturar, pois eles seriam essencialmente antagônicos. Assim, existiria uma espécie de oposição radical entre o mundo dos sentimentos e o mundo do comércio, do consumo. Mais ainda: o segundo seria uma ameaça contaminadora e empobrecedora do primeiro. O mercado corrompe ou macula o amor. De um lado, estaria, portanto, a paixão, a espontaneidade, o afeto, a intimidade, de outro, a racionalidade, o artificialismo e a homogeneização do mercado, do dinheiro.

Antes de entender se, de fato, seria assim tão simples, é preciso referir por que nutrimos em relação ao “amor” uma atitude tão zeladora e purista. Isto é, uma forma de concebê-lo como algo intocável, como um sentimento, um dom que não se divide, único, como essência insubstituível nas emoções e vida dos indivíduos. Não seria exagero afirmar que devotamos em relação ao amor uma atitude religiosa. Aliás, o ideal do amor romântico, o idioma cultural de nossas concepções mais básicas sobre o amor e a experiência amorosa, tal como nasce e se desenvolve no fim do século XVIII e ao longo do XIX, é definido prioritariamente como uma espécie de experiência ascética sobres os sentimentos para alcançar fins similares aos do cultivo religioso da alma, quais sejam: autoconhecimento, pureza, edificação espiritual, sacrifício, salvação. Para os românticos do século XIX, o amor é, no fundo, um mistério tão profundo e insondável quanto Deus.

Assim como a religião se define essencialmente em oposição ao “profano”, portanto como um terreno à parte feito de interdições relativas ao sagrado, também, o amor moderno se desenvolve como tal. Quer dizer, como algo da ordem do sagrado, uma forma de experimentar o sagrado, feito de mistérios, coisas extraordinárias e interdições que determinam uma oposição radical contra o profano. No caso, este último seria o mundo industrial, do dinheiro e da racionalidade, ou seja, aquele da instrumentalização das emoções e da naturalidade pela razão e o interesse. Daí a revolta tipicamente romântica aos casamentos/acordos arranjados pelas famílias.

As origens da desconfiança amorosa quanto ao mundo dos negócios se devem as origens culturais religiosas e ao ideário Romântico que formam, em larga medida, o ideal moderno de amor e intimidade de nossa cultura.

No que toca aos assuntos do coração, acreditamos que somente o amor e o sentimento por si mesmos e em razão de sua exuberância, pureza e dignidade naturais devem ter lugar na vida amorosa dos indivíduos. Todo o resto, dinheiro, família, tradição, religião, razão, trabalho são ameaças ou obstáculos ao pleno e verdadeiro amor.

Como certa vez afirmou o filósofo alemão Theodor Adorno: “A sociedade burguesa se assenta em toda a parte no esforço da vontade, só o amor deve ser involuntário, pura imediatidade do sentimento”.

Mas voltemos, então, a questão inicial: faz sentido, na prática, essa oposição radical entre amor e mercado? Ou, digamos sem rodeios, entre amor e capitalismo? Felizmente, um dos grandes méritos da Sociologia consiste em complicar e embaralhar o senso comum, quando não de desmistificá-lo.

Num livro excepcional, chamado Consuming the romantic utopia, Eva Illouz, socióloga marroquina, explicita a relação de complementaridade entre amor e mercado no século XX. Com o declínio da força e da legitimidade religiosa na aurora do século XX, a temática amorosa alcançou um papel central nos projetos de vida individuais, como condição vital para a autorrealização pessoal e medida por excelência para avaliar e alcançar uma vida plena ou a felicidade. A narrativa do amor converte-se numa verdadeira utopia individualista generalizada, afirma Illouz. O amor como ideal de vida plena e felicidade generaliza-se. Salta dos pequenos círculos letrados da burguesia para as demais camadas sociais.

E o que explica essa transformação e expansão do amor nas sociedades modernas? A universalização e secularização da narrativa amorosa romântica passaram, decisivamente, pela mercantilização dos contextos em que o amor é vivido e idealizado; cinemas, teatros, exposições, sessões culturais, livrarias, cafés, restaurantes com música ao fundo, lojas, centros comerciais, ruas bonitas para passear, viagens, etc..

O capitalismo, através do consumismo, da publicidade, da indústria do lazer e da moda, em vez de destruir ou sufocar as experiências do romance e da sensibilidade romântica (ânsia de diversão, desejo de experimentação de novas formas de liberdade e criatividade, busca de intimidade afetiva), exacerba-as. Por meio dos espaços de lazer e sociabilidade subordinados ao seu regime de produção e distribuição de bens e serviços, o capitalismo reúne os sentimentos românticos com a experiência do consumo na medida em que o mercado oferece aos primeiros uma substrato material (produtos, serviços, cenários, modelos de flerte, etc.) em função do qual o casal poderá desfrutar da vivência e fantasias do amor romântico. Sem a mediação do mercado, sem seus bens, serviços e paisagens, sem os livros, filmes e propagandas, o que seria do amor tal qual o experimentamos e o imaginamos?  Em outras palavras, o mercado é, muitas vezes, o contexto, o mediador e o roteiro da experiência e interação amorosas e do enamorar-se.

Para se ter uma ideia clara acerca do poderoso papel do consumo e do mercado na experiência amorosa, que cada um se pergunte e imagine, então, o que é uma situação romântica ou o desenrolar de um flerte e namoro, e, desse modo, perceba se, direta ou indiretamente, não se relaciona com algum tipo de serviço, mercadoria, roteiro ou paisagem mediada pelo consumismo. O escurinho do cinema, o bar, o jantar à luz de velas, caminhar de mãos dadas pela praia, realizar uma viagem exótica, seduzir alguém durante uma festa ou dança formam dos exemplos mais básicos e, até mesmo, clichês, usados e abusados pela publicidade, moda, cinema e outros setores da indústria de rituais românticos do capitalismo.

Longe de existir um antagonismo e resistência radical ou um envenenamento corruptor, Illouz ensina-nos que, ao contrário, entre amor romântico e mercado vigora um conjunto de afinidades, contradições e dependências mútuas típicos de uma história ou caso de amor.

 

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

One Response

  1. Linaldojr disse:

    Gostei Allyson, muito bem escrito. Parabéns!

Sociedade e Cultura

Violência contra a mulher deve ser caso de Polícia?

Sociedade e Cultura

Corinthians, Boca Júniors ou apenas o bom futebol?