Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 23 de junho de 2013

A vida sem catracas – Parte II

postado por Carta Potiguar

notas breves sobre as particularidades do movimento de protestos no Brasil – parte II

Por Alípio Sousa Filho

(Sociólogo e Prof. do Departamento de Ciências Sociais – UFRN)

Movimento progressista: sem chance quem pretende fazê-lo de conservador, manipulável pela direita ou militares golpistas.

images (1)Desconfiança daqueles que perderam a dianteira dos movimentos,  que estão perplexos por não terem sido alçados à condição de lideranças. Não é, portanto, nem como fantasia a direita nem como já insinuam militantes do PT, atordoados como o poder, um movimento contra o PT no governo, mesmo todo o desejo de insatisfeitos de direita e conservadores que o movimento assumisse este sentido. Não se pode querer que as recentes políticas públicas e programas especiais criados pelos últimos governos no plano federal, que se tornaram também exigências para governos estaduais e municipais, sejam suficientes para abolir um passado de exclusão, violência e discriminação no qual a maior parte da população esteve submetida, ou suficientes para apagar a frustração com políticos e governantes conhecidos por suas falsas promessas, atuações clientelistas, corruptas etc..

Tantas pessoas nas ruas denunciam o fracasso do sistema político que se mantém até aqui, que produziu um profundo alheamento dos representantes políticos e governantes com tudo o que se passa à volta deles próprios. Alguns que funcionam como verdadeiras catracas na vida de muitos na sociedade brasileira: inviabilizando avanços, direitos emancipatórios, políticas progressistas, igualdade participativa, cidadania plena. É fato que o movimento representa também o fim do céu-de-brigadeiro da coligação PT-PMDB no poder, que, tentando criar a imagem de que o país nunca esteve tão bem como agora, incluindo ter uma “nova classe média” (bizarrice conceitual e sem amparo no social), crédito para todos, incluindo abarrotar as cidades de “carros novos”, em detrimento de sistemas de transportes públicos bem pensados e de qualidade, com gente com equipamentos de informática de todo gênero, mas sem saber ler ou escrever pelo fracasso da escola que mantemos, entre outros exemplos, tudo isso apresentado como o melhor do “novo mundo”, como “nunca antes da história do país”, não foi suficiente para impedir a irrupção de insatisfações, geradas entre diversos segmentos da sociedade, e não apenas da classe média (como alguns tentam reduzir o movimento e como se a classe média não pudesse legitimamente constituir reivindicações próprias), por razões que têm a ver com o próprio fato dos recentes governos do PT terem tornado possível conquistas e avanços que estes mesmos segmentos gostariam de ver progredir. Não se pode invalidar um movimento pelas tentativas de apropriação que procuram fazer setores estranhos a ele.

Nesse sentido, a aparição de “carecas neonazistas”, fascistas, conservadores aproveitadores, minorias que não dão o tom dos protestos, não deve servir de pretexto para a invalidação do movimento. Apressadinhos da esquerda, e, sobretudo, do PT, veem neles, que são pura expressão de oportunismo, a chance de questionar o movimento inteiro, buscando voltar à cena como os protagonismos únicos e insuspeitos.

 A pulsão violenta e anárquica.

A pulsão violenta do movimento, e esta há e é autêntica em seus atos, mostra que se sabe também agir violentamente para expressar o ódio ao desprezo pelos mais pobres, às exclusões sociais. Ninguém se engane: pessoas depredando patrimônio público e privado não é o que queremos, mas os atos chamados de vandalismo são denúncias das exclusões a que as maiorias estão submetidas no modelo de sociedade que temos mantido. É importante observar que os prédios atacados são justamente as sedes do poder público e importantes símbolos do capitalismo excludente e do aparelho da repressão policial. São os bancos os principalmente atacados. Atacar, pichar e até mesmo destruir esses locais são expressões de uma massa em fúria que manifesta as contradições, desigualdades e exclusões geradoras de vidas sofridas, diminuídas, discriminadas. Vidas que, por sua invalidação pelo sistema de sociedade que é o nosso, expressam-se com o desejo de destruir o sistema que as invalidam. Atacar alguns de seus signos é simbólico e é profundamente político. Os chamados vândalos são os excluídos produzidos pelo próprio sistema de sociedade que se sustenta até aqui. As destruições são metáforas puras.

 Ataques a símbolos do poder e do capitalismo.

Imagens nacionais, das maiores às menores cidades, mostram manifestantes agindo para entrar nos palácios do poder. Um ato que deveria ser interpretado como as pessoas dizendo: esse lugar é também nosso. Queremos que nos escutem. Denúncia, em muitos casos no país, de políticos impostores que ocupam funções públicas, que usurpam a função de governantes e representantes políticos. A turba furiosa espetaculariza o desejo de outro estilo de poderes, governantes e representantes políticos: democráticos, acessíveis, justos, atentos às necessidades da população. Na pequena Juazeiro do Norte, no Ceará, o prefeito que fez dezenas de professores municipais chorarem o sofrimento da redução autoritária de seus já baixos salários foi cercado durante cinco horas numa agência bancária. Há que se compreender a indignação dessa gente, sofrida, humilhada, violentada cotidianamente em seus direitos. Gente que tem sua vida roubada por legítimos representantes de um sistema de sociedade em que a vida vivível é uma exclusividade para poucos, como nas publicidades para a venda de carros ou moradias de luxo.

Os bancos são outro alvo dos ataques: símbolos maiores do capitalismo vigente. Banco é dinheiro, lugar de guardar e pegar dinheiro. Quem não tem, quem é impedido de ter, vai lá e assalta, rouba. O roubo do roubo: dos juros altos, das tarifas arbitrárias, do pequeno crédito para os pequenos, os lucros fabulosos dos banqueiros mundiais. Os manifestantes denunciam a rapinagem fazendo eles próprios seus “saques”, sua depredação. Manifestação de indignação à instituição que é a síntese do modelo de sociedade cuja lógica é da inserção pelo consumo, o que não se faz sem dinheiro: os bancos talvez sejam quebrados como metáfora suprema do sistema de exclusões a que a maior parte dos jovens está submetida.

Os shoppings são outro dos alvos da pulsão violenta do movimento: vitrines da separação, da inferiorização de classe, espaços da soberba de elites atrasadas, os shoppings são atacados como símbolos do mercado das exclusões. Não é de estranhar, pois, que, na sociedade em que a cidadania, o direito de ir e vir (tão defendido nestes dias por gente conservadora, incomodada com as paralisações no trânsito), o poder de comprar, a educação, a saúde tornaram-se um privilégio das classes mais favorecidas economicamente, setores dela reajam com uma fúria jamais vista em grandes atos coletivos, que rapidamente certa opinião pública e mídias nomearam de “vandalismo”. Cruzando as ruas da cidade, ouvi flanelinha num semáforo a dizer com certo ar de ingenuidade e entre sorrisos: “sou um vândalo, vou vandalizar na manifestação”. Minha surpresa com o uso da língua veio imediata com a compreensão da fantástica expressão de identificação com a ação violenta que brota das entranhas da “escória” que o próprio sistema produziu, e que se vê agora vingado por ela. Não há que estranhar nada disso. A não ser por moralismo e hipocrisia.

 Manifestação de ódio ao aparelho policial.

As destruições de cabines policiais nas ruas ou de depredação de delegacias é outro dos atos que deve ser compreendido no contexto de uma sociedade autoritária e violenta que institucionalizou uma polícia violentíssima na ação contra os mais pobres, estudantes, negros, gays, moradores das chamadas periferias, moradores de rua. É sabido, temos uma das mais violentas polícias do mundo, com farto histórico de violação a direitos, práticas de torturas, associação com grupos de extermínio e envolvimento em toda sorte de ilegalidades para atuações violentas.

O poder atordoado.

images (2)Assim circula na mídia: “como as manifestações não têm líderes assumidos nem organicidade, o trabalho de infiltração fica prejudicado e todo o trabalho de inteligência do Exército está focado nas redes sociais, 24 horas por dia. É com base nesse monitoramento que o Comando do Exército avalia que não há como tranquilizar o ministro [da Defesa] e a presidente de que o pior já passou. Ou seja, não descarta novo recrudescimento”. (Folha/Uol/22/06/2013).  Para aqueles de esquerda que reclamam que a falta de líderes e unicidade do movimento dificulta a relação com os partidos (de preferência de esquerda…), na ânsia destes dirigirem e controlarem o movimento, é bom perceber que a vontade de controle do poder, da direita e da esquerda terminam por coincidir e favorecer a ação da maquinaria de poder do sistema, o que talvez a inteligência do movimento tenha sacado e vem utilizando a seu favor, para desespero e atordoamento de todos aqueles que querem o controle da realidade das coisas, dos movimentos, da vida de todos. O caráter heterogêneo, espontâneo e anárquico dos protestos acabou todas as pretensões dos poderes sociais, policiais, militares e políticos – de todas as cores confundidas – de exercerem sua vontade de controle.

A insinuação autoritária.

Começa a circular no país o temor que o movimento degringole à direita. Denuncia-se a insinuação autoritária de grupos direitosos, skinheads, os “carecas” neonazistas, agredindo militantes de partidos e sindicatos, destruindo manifestos. Se é fato que, em algumas cidades, estes grupos se manifestaram, estes não têm a hegemonia dos protestos. Uma minoria oportunista e sem chance de tomar a dianteira. Não há disposição dos manifestantes, e visto toda a natureza dos protestos até aqui, em assumirem um discurso e uma prática de direita, conservadora, autoritária. Aqueles que começam a lançar essa desconfiança sobre o movimento tem razões que não podem expressar: estão incomodados porque não têm o controle da situação e já perceberam o risco do questionamento aos limites do sistema político que eles mantêm e dele se beneficiam, e aqui todos os partidos confundidos.

O movimento não carrega consigo nenhum germe da vontade fascista do fim da política e dos partidos. Ao contrário, por tudo que se pode observar até aqui (mais para isso é preciso abandonar os a prioris de certas concepções políticas e categorias de análise), ele questiona que a política seja instrumento da preservação da dominação, da violência, da exclusão, da discriminação. Sem formulação precisa, o movimento oferece todos os sinais do desejo de diversos setores da sociedade em Outra Política.  Não é o desejo de sociedade sem política e sem partidos políticos, mas na qual a política possa ser o instrumento do alargamento da democracia em diversos âmbitos da vida social e coletiva.

 Luta semiológica. A batalha das palavras e das ideias.

Nas manifestações, pode-se ver as ironias, sarcasmos e inversões semânticas do discurso do poder e do sistema de sociedade dominante.  É a crítica política utilizando-se da arma do contradiscurso, da arma das palavras. Cartazes, faixas e palavras de ordem trazem inversões como “enfie os 0,20 nos SUS”, “não é por dinheiro, mas por direitos”, “queremos escolas e hospitais nos padrões da Fifa”, “Saúde e educação, Feliciano não”, “prefeito, tire do lucro dos empresários, não do espinhaço do povo”, “não queremos copa, mas saúde e educação”, “Doutor, eu não me engano, quem está doente é Feliciano”, “Foda-se Blatter”, “sorria, você está sendo roubado”, “não é pelo busão, é pela nação”, “vim para a rua porque sou vadia”. Em todos esses dizeres, o apelo ao justo tratamento governamental às questões da vida cotidiana se sobressai. Enfoca-se a ação conservadora de parlamentares, o descaso de governantes com necessidades básicas da população. Tudo no espírito do presenteísmo, da vida a ser vivida no aqui e no agora. A vida que não pode mais ser roubada ou adiada na violação de direitos (de gays, trabalhadores, negros, mulheres, estudantes), na falta de políticas públicas e programas, em todas as esferas governamentais, e que não sejam apenas objeto de propaganda política, mas reais instituições da vida cotidiana nas diversas cidades.

Carta Potiguar

Conselho Editorial

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