Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 24 de junho de 2013

Apertem os cintos… a Esquerda sumiu

postado por Wilson Ferreira

Do blog “Cinema Secreto: Cinegnose”

A escalada de manifestações nas ruas em todo o país parece expressar um profundo mal estar dos jovens em relação não apenas à política (o jogo partidário), mas principalmente à instituição da Política como representação de qualquer demanda social. Desconfiam que por trás da Política ou do Poder não existe nada mais do que ardil, simulação, blefe. Mas a mídia tem horror ao vácuo: para manter o ardil da simulação os meios de comunicação precisam encaixar as manifestações em um script, assim como um novo roteiro de um filme publicitário que oferece mais do mesmo para o mercado.

As interpretações dos cientistas e comentaristas políticos crescem na mesma proporção que os protestos nas ruas. Em toda essa espiral interpretativa há um ponto que todos parecem concordar: a incrível flexibilidade e rapidez da logística das mobilizações nas ruas através das redes sociais contrasta com os lentos canais de comunicação representativos de partidos políticos, Executivo e organizações classistas. A UNE, por exemplo, desapareceu. Qualquer identificação partidária no meio das passeatas é vista com maus olhos e rejeitada pelos manifestantes.

Mas essa questão logística de comunicação é apenas o sintoma: os jovens na rua estão expressando um profundo mal estar em relação não apenas à política (o jogo partidário), mas principalmente à Política – o questionamento da própria ideologia política como representação de qualquer demanda social. Em outras palavras, os jovens desconfiam que por trás da Política ou da ideologia não existe nada e que tudo é um ardil, uma simulação, um blefe.

A essa desconfiança que parece estar latente em cada voto nulo ou em branco o pensador francês Jean Baudrillard chamava de “grau zero da política”. Para ele o Poder teria perdido a sua correspondência objetiva no real. Ele subsistiria apenas no campo midiático da simulação da vontade política das autoridades, das suas declarações, das suas “canetadas” em projetos e promulgação de leis, nas intrigas palacianas, nos boatos metodicamente “vazados” para as mídias. Diante do Capital, o Poder subsistiria como mero gerenciador da manutenção macroeconômica. Dito de outro modo, o Poder não mais produz a Política, ele apenas reproduz políticas econômicas, financeiras, sociais etc.

O perigo da simulação

Na Política não existe produção,
mas reprodução

É exatamente esse o perigo de toda simulação ou blefe: e se suspeitarmos de que nada existe por trás? E se o eleitor descobrir que por trás da representação democrática não existe produção (História, Revolução, Transformação, Rupturas etc.), mas apenas a reproduçãad eternum não só do jogo político (circularidade e auto-referência) como também reprodução da onisciente necessidade de reprodução macroeconômica do valor de troca?

Esse mal estar de que, na verdade, “tanto faz” representaria o momento de verdade de toda essa escalada de protestos que testemunhamos nas ruas e nos meio de comunicação. Os jovens estão deixando o rei nu, Dorothy abre a cortina e descobre que o Mágico de Oz não existe.

Horror ao vácuo

Porém, a natureza parece ter horror ao vácuo. A ausência de centro gravitacional, de uma massa com densidade suficiente para criar uma força centrípeda que dê sentido à Política e ao Poder, passa a ser compensada de forma canhestra por uma instituição: a mídia.

Quando Maria Judith Brito, presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), falou que diante de uma oposição fragilizada politicamente no país os meios de comunicação seriam de fato o verdadeiro partido de oposição, não foi uma mera bravata ou elogio à liberdade de (em)imprensa. Foi na verdade uma tese baudrillardiana de que toda a sociedade já gravita em torno das mídias como a única forma de produção de sentido possível, nem que seja como simulação.

O campo de enquadramento da câmera passa a ser o novo tempo forte do social, em torno do qual todos os agentes gravitam, inclusive o próprio Poder e a Política.

Nas ruas o comportamento dos manifestantes diante das mídias tem semostrado ambíguo: de um lado queimam furgões de emissoras de TV como o da Record em São Paulo ou expulsam repórteres da TV Globo como o caso de Caco Barcelos no Largo da Batata também em São Paulo; por outro, onde tem um cinegrafista e um spot de luz (desde que não identificada a emissora) é imediatamente cercado por manifestantes que gritam palavras de ordem, pulam, acenam e mostram cartazes com mais palavras de ordem e reivindicações.

É inegável que há um componente cênico-teatral nas ações nas ruas, um desejo de visibilidade, de repercussão ao depredar símbolos midiáticos (o painel da Coca-Cola em referência à Copa 2014 na Avenida Paulista, São Paulo) ou quando eskatistas posam para fotos e cinegrafistas diante da carcaça do furgão da TV Record incendiado. 

O incêndio do painel da Coca-Cola
Copa 2014 (Avenida Paulista, SP)

Em poucos dias a TV Globo passou a compará-los aos “caras-pintadas” do impeachment de Collor, a convidar os espectadores a enviar seus melhores vídeos sobre os protestos, a caprichar nos enquadramentos de forte carga retórica (torre da FIESP na avenida Paulista iluminada em verde e amarelo diante de um mar de faixas e cartazes, uma criança que dava flores para cada manifestante que passava na avenida Faria Lima…). E as cenas de depredação e incêndios provocadas claramente por truculentos agitadores sempre mostrados em tomadas aéreas por helicópteros para dar um impacto ainda maior de caos e anomia, emendadas por comentários sobre perda do controle federal, repercussão internacional das manifestações, aumento do dólar e assim por diante em um delirante discurso metonímico.

Se a grande novidade da explosão das manifestações foi pegar a questão das tarifas de ônibus como um álibi para expressar esse mal estar do jovem diante do artificialismo da Política, agora ironicamente começam a ser capturados pelo mesmo discurso midiático que quer encobrir esse mesmo artificialismo ao simular a existência de Poder através do ensaio de golpe contra o governo Dilma.

Nostalgia ideológica

Se o Poder não existe para Baudrillard, porque falar então em “golpe”? Para Baudrillard, se existe Poder ele não está mais no campo da política e do discurso, mas na ordem do proibido, da Lei, dimensões que evocam muito mais uma antropologia da política do que a ordem objetiva do real. Explicando melhor, o PT precisa ser derrubado não porque ele é virulento e radical (afinal ele nada mais fez até agora do que modernizar o país pela normalização das funções de reprodução de força de trabalho e consumo ótima para o capital com as medidas de inserção social e a manutenção da financeirização), mas por uma necessidade simbólica de simulação das diferenças ideológico-partidárias.

Encaixar os gritos das ruas à pauta midiática do combate à corrupção e à indignação “contra tudo que está aí” é um álibi para invocar toda a nostalgia ideológica retro da Direita: neoliberais radicais, neofascistas e tantos “neos” quanto forem necessários para a simulação do embate político.

Dilma precisa ser derrubada por uma
necessidade simbólica de
simulação das diferenças ideológicas

Pois justamente no momento em que os jovens nas ruas expressavam esse sintoma do envelhecimento e fastio diante do jogo da simulação da Política e do Poder, eis que surgem os meios de comunicação ávidos por encaixar esses jovens manifestantes em um roteiro pré-estabelecido que, por incrível que pareça, a mídia levou algum tempo para entender: o script da “primavera de mudanças”, da “novidade política”, assim como o roteiro de uma campanha publicitária que lança mais do mesmo no mercado. 

Tudo isso lembra o já mítico filme “Show de Truman” (Truman Show, 1998): diante da melancolia e paranoia crescentes do protagonista que desconfia de que há algo de errado na cidade de Seaheaven onde vive, o produtor do reality show cria um plot melodramático para racionalizar o mal estar de Truman: na verdade tudo o que ele sente nada mais é do que a culpa pela morte do pai.

Da mesma forma os meios de comunicação querem transformar as manifestações na palmatória de um suposto processo de moralização política em andamento, retirando toda a radicalidade de jovens que começavam a perceber que por trás das camadas ideológicas, nada existe.

Em um revival nostálgico voltam à memória da mídia a “marcha pela família” que antecedeu o golpe que derrubou João Goulart em 1964, as greves gerais que minaram o poder do governo socialista de Allende no Chile e a “Marcha dos 100 mil” de protesto contra a ditadura militar brasileira em 1968. Da Esquerda para a Direita essas imagens retro são repercutidas para, de alguma forma, dar sentido às verdadeiras flash mobs que se tornaram as mobilizações. A mídia soube entender em tempo hábil tudo isso, mas e a Esquerda? Sumiu… apertem os cintos. 

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Wilson Ferreira

Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi/São Paulo na área de Estudos da Semiótica. Pesquisador CNPQ do grupo de pesquisas "Cinema e Sagrado no Cinema e Audiovisual e autor dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus. Editor do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" sobre confluências entre Gnosticismo e Sagrado no Cinema, Audiovisual e Cultura Pop em geral.

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