Rio Grande do Norte, domingo, 28 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 10 de outubro de 2013

Passe Livre: vitória ou desilusão?

postado por Jules Queiroz

O projeto de lei da vereadora Amanda Gurgel (PSTU) que institui o chamado “passe livre” para estudantes no transporte urbano de Natal foi arrancado à força da Câmara Municipal. Sem qualquer discussão racional, a CMN aprovou por unanimidade a medida, sob forte pressão de movimentos sociais.

A mim parece que a CMN lavou as mãos sobre esse tema delicado para jogar a bomba no colo do Prefeito Carlos Eduardo Alves e, mais tarde, do próprio Judiciário.

Gostaria apenas de salientar que, apesar de ter uma opinião bastante clara de que o projeto, como foi apresentado e aprovado, é inconstitucional, procurarei expor aqui não apenas a minha opinião, mas sim a controvérsia sobre a qual se dará o debate. Como qualquer controvérsia, há argumentos de ambos os lados.

Basta mostrar, em primeiro lugar, os argumentos contra o “passe livre” apresentados pelo Procurador-Geral do Município Carlos Castim (http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/procuradoria-vai-sugerir-veto-total-ao-passe-livre/263370) . Por outro lado, argumentos a favor do projeto são expostos pelo advogado Fernando Castelo Branco (http://portalnoar.com/mestre-em-direito-afirma-que-procurador-mentiu-e-defende-passe-livre/).

Para mim, a principal controvérsia está no seguinte ponto: trata-se de legislação sobre serviço público que veicula aumento de despesa, de forma que o processo legislativo deve ser iniciado pelo Prefeito.

É que o artigo 165 da Constituição Federal, aplicado também aos Municípios, prevê que leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão o plano plurianual (PPA), a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e lei orçamentária anual (LOA). Essas são as leis que estabelecem o planejamento do Estado (em sentido amplo) para quatro anos (PPA) e para cada exercício financeiro (LDO e LOA).

A Constituição impõe que os orçamentos sejam uma unidade. Não necessariamente uma unidade formal, mas sim uma unidade de planejamento. Então, qualquer  iniciativa legislativa que crie despesas para o Estado deve ser inserida sistematicamente na lógica orçamentária, sobre pena de inconstitucionalidade.

No caso de projetos como o “passe livre”, que ultrapassam um exercício financeiro, devem ser inseridos especificamente no PPA (§ 1º do art. 167 da CF).

A grande questão é são vedadas alterações pelos parlamentares nas leis de iniciativa exclusiva do Executivo (aí incluídas as leis orçamentárias) que impliquem aumento de despesa. Esse seria o vício essencial do projeto “passe livre”. Qualquer alteração nesse sentido deve ter a iniciativa do Prefeito.

Mas, nesse ponto, ainda há escapatória para o “passe livre”. É que essa proibição comporta exceções: caso sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias; indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa (art. 166, § 3o, CF).

Inclusive, a Lei Orgânica do Município impõe que a concessão de isenção de tarifas de transporte coletivo seja feita por lei e indique a fonte de custeio e a forma de pagamento (art. 130).

Segundo o projeto “passe livre”, de acordo com o que pude consultar de cartilha do mandato da vereadora Amanda Gurgel (http://issuu.com/amandagurgel/docs/a_legitimidade_do_projeto_de_lei_do_881930824e017e), a ideia tem três fontes de custeio: recursos da ordem de R$ 851 milhões do PPA 2014-2017; redução de lucros das empresas de transporte; convênios com Estado do Rio Grande do Norte e União.

A meu ver, contudo, essas fontes não são idôneas. Ora, como já colocamos, os recursos dos projetos de iniciativa parlamentar devem ser admitidos apenas quando utilizem recursos de despesas anuladas das leis orçamentárias ou no máximo, excesso de arrecadação (Em Natal? Até parece).

Apesar do projeto indicar recursos do PPA 2014-2017, até onde pude identificar não delimitou de quais projetos seriam retirados os recursos. A rubrica que o projeto aduz é a de “Desenvolvimento Sócio-Espacial” no programa “Mobilidade e Acessibilidade”. Mas esses programas certamente já têm destinações específicas. É preciso primeiro afastá-las para, após, destinar seus recursos. Ainda assim, trata-se apenas de financiamento parcial.

A redução de lucros é de difícil implementação. Primeiro porque o Município não tem qualquer controle sobre a atividade financeira das empresas de ônibus, que permanecem em um limbo jurídico já há décadas. Não há qualquer previsão contratual ou normativa de qualquer margem de lucro. Assim, não há qualquer parâmetro de controle. Isso, contudo, não é culpa de Amanda Gurgel nem do PSTU. É de décadas de prefeituras que não conseguiram desatar o nó.

Nesse ponto ainda importa destacar que aqui também não se trata de receita liberada com anulação de despesa, mas sim de receita incerta em diversos aspectos.

Inclusive, a norma do art. 2o do projeto tem pouca aplicação prática. Ele dispõe que não pode haver aumento de tarifa de transporte pelo impacto do passe livre. Ocorre que, em sede de concessões e contratos administrativos, a Constituição garante à empresa o chamado “equilíbrio econômico-financeiro”. Ou seja: o dinheiro que vinha até então das passagens agora gratuitas vai ter que sair de algum lugar. Se não do Tesouro Municipal, então das tarifas. Por mais que isso cause ojeriza à esquerda, Milton Friedman foi diabolicamente preciso: não existe almoço de graça.

Quando aos recursos da União e Estado, a cartilha confunde duas ideias: convênios e transferências obrigatórias. Os convênios dependem, como é óbvio, da boa vontade da União e do Estado, pois são transferências voluntárias. Não são recursos de que dispõe o Município. Mesmo porque qualquer convênio exige uma contrapartida local. Esta, não sei se existe. Além disso, o recebimento de convênios demanda disciplina e regularidade fiscal do ente, sob pena de contingenciamento.

Por outro lado, quando se fala da “quota parte do IPVA 2013” se fala de transferência constitucional obrigatória do Estado para o Município prevista na Constituição. Ocorre que não é permitido vincular a receita de um imposto específico a uma despesa específica (art. 167, IV, da Constituição). Mais uma vez, aqui, deve ser tirado o dinheiro do “bolo geral”: deve ser anulada uma despesa já provisionada para se incluir outra em seu lugar.

O fantasma de Milton Friedman, neste momento, olha para cima e ri.

A favor do projeto, milita a circunstância de que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem sido favorável à concessão por lei de gratuidades em matéria de transporte público, muito embora em contextos muito particulares e esparsos.

O STF julgou constitucional a gratuidade de transporte público ao idoso prevista no Estatuto do Idoso e em diversas leis estaduais (ADI 3768, Min. Rel. Carmém Lúcia, 19.09.2007). Nesse caso o STF entendeu que a gratuidade decorre diretamente da Constituição, que a garante no artigo 203, § 2o, sendo a lei mera regulamentadora. A Lei Orgânica de Natal também prevê algumas gratuidades, em especial a idosos e pessoas com deficiência.

No caso de gratuidade para estudantes, o STF julgou constitucional disposição de Decreto do Governador do Estado do Piauí (ADI 1191-MC, Rel. Min. Ilmar Galvão, 23.03.1995). Contudo, o STF entendeu que não existia de fato gratuidade imposta pelo Poder Público, mas apenas faculdade de sua adoção em determinados casos. Não é o caso da lei natalense.

Contudo, em nenhum dos casos o STF precisou a analisar o problema do vício de iniciativa ou a adequação orçamentária. Assim, estaremos diante de caso novo.

O que é certo que a lei do passe livre pode dar muito certo ou muito errado. Espero apenas a mesma “boa vontade” da vereança ao apreciar o projeto da licitação do transporte público.

Jules Queiroz

Procurador da Fazenda Nacional em Brasília/DF - @julesqueiroz

3 Responses

  1. Lucas disse:

    Caro escritor, para fazer algumas analises sobre o exposto.
    Primeiro, é impressionante quando se tem ma vontade com relação a um assunto que nao seja de interesse da administração, a mesma avocar preceitos juridicos para invalidar o assunto, concordo nos argumentos sobre fontes de financiamento esse sim pode ser o canal da discussao, mas alegar vicios juridicos e sei la mais o que nao é pertinente, veja o caso do mais medicos, o governo editou uma mp que cria, altera, exclui, enfim faz o que for necessario em termos de legislaçao pra fazer valer sua vontade, se fosse contra como é o caso do passe livre ai vem com argumentos que todos sabem que se for do interesse de CEA esses vicios podem ser facilmente sanados, entao nao cabe CEA dizer que so é contra por causa da legislação, se ele for a favor de verdade é possivel sim corrigir.
    Segundo, governar é muito mais do que sonhar, votei em Amanda, mas espero que ela e seu partido se tem o sonho de realmente governar para mudar, precisam aprender sobre administração, causas e consequencias das decisoes, que orçamento nao é um saco sem fundo, que partido seja ele de esquerda ou de direita nao pode ficar so no bom discurso da oposição, tem que apresentar propostas e projetos que se mantenham em pe. Amanda seja alternativa, e nao apenas criadora de caso para o governo, ate porque um dia espero te ver governo, um governo consciente.

  2. Carlos Augusto disse:

    Muita enrrolada júrídica contra uma proposta popular e, creio, que legítima.
    Evidentemente que precisa ser aprovada, mas o prefeito deveria concordar e procurar discutir e chegar a uma fórmula de implementação.
    Eu sou a favor, inclusive, da ampliação do passe livre juto com a ampliação significativa (quantidade e qualidade) do transporte coletivo. Essas medidas combinadas serão, a médio prazo, fatores de melhoria de tráfego, diminuição de acidentes, economia de combustíveis e benefícios ambientais.
    Acho, finalmente, que Amanda Gurgel e os vereadores do PSOL estão cumprindo, muito bem, o papel transmitido na campanha. Tirou da letargia a CVN. Agora virou moda criticá-los

  3. Marcos Antonio disse:

    Das alegadas inconstitucionalidade do Passe Livre em Natal.

    Direto ao ponto: vício de iniciativa e orçamentário.

    Quanto ao Vício de Iniciativa

    Ainda bem que, igualmente, ao eminente Procurador Geral do Município de Natal – Sr. Carlos Castim, o nobre procurador da fazenda parece não ver vício de iniciativa no projeto, pois essa falácia é facilmente desmentida com fulcros na Lei Orgânica do Município de Natal, Art. 21, Incisos XI e XIII, Caput do Artigo 39 e Parágrafo 1º e no Art. 55, que prever de maneira clara não ser de iniciativa privativa do prefeito, e sim uma prerrogativa dos vereadores a elaboração de leis relativo aos serviços públicos, entre eles, transportes públicos.

    Quanto a questão orçamentaria:

    Segundo a Lei Orgânica do Município, Artigo 39, parágrafo 2º, inciso II, é prerrogativa de quaisquer vereador apresentar proposições, que possam ordenar despesas, desde que se indique as fontes de recursos, inclusive, com admissão de anulação de despesas já previstas, fato que é novamente ratificado no Art. 130.

    Portanto, em relação as fontes, não há de se levantar a presunção de fontes não idôneas, pois em tese, quaisquer uma das despesas podem ser realocadas para cobrir o gasto com o passe livre, principalmente, as que
    são dos programas de acessibilidade e mobilidade por se tratar de verbas
    orçamentarias especificas para os transportes coletivos, e apontadas como uma das alternativas prevista no projeto. O único fato que se podia por ventura suscitar um vago questionamento, é o apontamento da fonte de maneira genérica, pois é impossível identificar ou prever antecipadamente itens específicos constante do orçamento, antes de elaborá-lo ou conhecê-lo.

    Em relação ao argumento bobo, do PGM – Sr. Carlos Castim, de que a fonte de recursos não poderia ser remetida ao PPA – Plano Plurianual por ser uma peça de previsão, se constituí num grave equívoco, pois a rigor todas as peças orçamentarias são de previsão (PPA, LOA e LDO) a única diferente é o orçamento realizado.

    Quanto à existência de outras fontes de verba especifica, foi identificado no orçamento da SEMOB – Secretaria de Mobilidade Urbana, cerca de quase R$ 9 milhões para transportes coletivos. Além do mais, a previsão de realização de convênios com o Estado e União, é uma opção rotineira (vide obras da copa) e de fácil operação, pois não requer do munícipio grandes contrapartidas de recursos. Portanto, altamente, factíveis.

    Se o propósito do nobre procurador é contribuir para instalar um processo em consonância restrita com os marcos legal, constitucional e se realmente tem lucidez em sua tese, então, deve refutar imediatamente o PLS 248/2013 de autoria do Senador – Renan Calheiros, pois obedecendo os mesmos moldes é de iniciativa do poder legislativo federal e tem como fonte de gastos, uma rubrica orçamentaria, que é apenas uma perspectiva de realização futura, que são os royalties do petróleo do Pré Sal. Além disso, deve o nobre procurador se debruçar em analise, sobre a previsão já consolidada na mesma lei orgânica deste município, em seu Artigo 128.

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