Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 12 de dezembro de 2013

Para além das torcidas organizadas: por que não temer a violência?

postado por Túlio Madson

Talvez eruditos de outros séculos definam que o maior erro de nosso tempo foi à crença de que os seres humanos são animais essencialmente violentos. Bestas que precisam ser contidas pelas amarras do Estado, encarceradas, mortas.

As pessoas, mesmo as mais individualistas, em geral, não são assassinos naturais, com exceção de uma ínfima minoria de sociopatas e psicopatas que geralmente não assumem o estereótipo que atribuímos à pessoas com essa patologia.

O século XX, marcado por um acelerado processo de urbanização da população, e o conseqüente isolamento com a natureza, além de grandes guerras e genocídios, contribuiu para que a visão de Rousseau sobre o homem e a natureza exemplificada pela máxima “o homem é o lobo do homem”, até então restrita aos acadêmicos e intelectuais, adquirisse maior capilaridade entre a maioria da população.

O homem precisa culpar algo para consolar-se de seus erros. Culpar uma entidade metafísica denominada “violência” é um meio confortável de enfrentar os dilemas impostos pela urbanização. Durante milênios nossa sociedade foi organizada em pequenos clãs e aldeias. Viver em grandes densidades populacionais é um comportamento antinatural para os humanos, precisamos aprender a lidar com isso. Desconsidera-se que uma maior percepção da criminalidade é conseqüência de um contexto maior, fruto, entre outros fatores, de uma urbanização acentuada e mal planejada, além da super exposição na mídia de casos isolados. Qualquer animal quando colocado em uma situação estressante de superpopulação e subsistência terá aflorado seus instintos mais violentos – a violência é uma forma eficaz de auto defesa em um ambiente hostil. Coloca-se a culpa no indivíduo, não nas circunstâncias, por ser este o meio mais cômodo de resolver o problema.

Cresci no bairro Neópolis, “reduto” de uma torcida organizada, já me deparei, na quadra do bairro, com um varal de camisas do time rival exibidas como troféus. Como antropófagos, os membros posavam para fotos e exibiam as camisas que simbolizavam os corpos violados dos adversários. O futebol por si só não explica o senso de comunhão presente entre seus membros, havia algo mais ali, mais forte e primitivo: a sensação de pertencer a algo, um bando, uma horda, uma família.

Criar identidades é uma necessidade humana. Precisamos acreditar que pertencemos a alguma coisa. Seja uma nação, uma classe, um partido, uma ideologia, uma religião, uma tradição, ou, até mesmo, uma torcida de time de futebol.

Quando agimos em nome do grupo, em nome de algo maior, não nos sentimos responsáveis por nossas atitudes. Ficamos vulneráveis, inclinados a cometer atitudes que não cometeríamos se estivéssemos sozinhos.

Hannah Arendt nos lembra que os funcionários dos campos de concentração nazistas eram pessoas normais, não eram monstros, aberrações. Eram pessoas que acreditavam – por mais macabro que pareça – estarem apenas cumprindo o seu dever. O que ela definiu como “a banalidade do mal”.

Do mesmo modo, em muitos casos, as pessoas envolvidas em brigas de torcidas organizadas, não são psicopatas, assassinas, sádicas. Na maioria dos casos, fazem o que fazem por acreditarem estar defendendo o grupo, ou se livrando de uma ameaça em potencial. Apesar da dimensão homérica das brigas, por mais que a mídia se esforce em mostrar o contrário: elas são a minoria, até mesmo dentro das próprias torcidas. O que não significa que tais atitudes não devam ser punidas, devem, mas todo esse frenesi sobre o caso não se justifica. Não está nos estádios o cerne do problema da violência em nosso país.

Para Pierson as maiores atrocidades “são geralmente iniciadas por tipos de personalidade muito auto-controladas em posições de segundos-em-comando, e não por tipos de personalidade sem auto-controle”. Pessoas como as que aparecem nas imagens da briga de torcidas são menos perigosas do que aquelas em uma posição de dar ordens. A violência passional é menos danosa do que a violência estatal ou institucional. Já que guerras e genocídios ocorrem quando as pessoas são convencidas a matar sob ordens.

O biólogo Desmond Morris afirma que o estilo de luta instintivo dos humanos foi aperfeiçoado para nos impedir de causar danos fatais ao adversário. Qualquer um que já viu uma briga de rua sabe que o estilo instintivo de luta consiste em empurrões e socos na área do tórax, ombros e cabeça, além de chutes na cintura e pernas, regiões repletas de ossos. Um método de luta pouco eficiente se comparado aos golpes fatais desferidos por um artista marcial – que aprendeu pela técnica a domar o instinto – focados nos tecidos moles, que podem facilmente matar um adversário que não seja treinado. O fato de não haver vítimas fatais após o ocorrido só corrobora isso.

Segundo Eric Raymond, “menos de 0,5% da população já matou alguém em tempos de paz. Assassinatos são executados geralmente por homens entre as idades de 15 e 25, e a imensa maioria desses por homens solteiros. As chances de uma pessoa ser morta por um humano fora dessa faixa demográfica são comparáveis às chances dela ser morta por um raio”. É um erro, portanto, acreditar que a violência espalha-se de modo endêmico pelo corpo social. Assim como a crença de que as ruas e os espaços públicos são locais onde se corre um risco iminente de vida.

O medo desmedido, fantasioso, pela violência do outro, nos afasta dos espaços públicos, nos enclausura em fortalezas habitacionais, em carros, parafernálias eletrônicas, ambientes e jogos virtuais.  Aquele que enxerga em qualquer estranho uma ameaça em potencial, está disposto a abrir mão de qualquer coisa para ser protegido. Inclusive sua liberdade. Uma sociedade amedrontada pelo medo da violência propicia as condições necessárias para que uma violência estatal, normativa, até privada, se efetive em uma escola infinitamente maior do que alguns casos isolados. O medo desmedido da violência só gera mais violência.

Túlio Madson

Colunista na Carta Potiguar desde 2011. Professor e doutorando em Ética e Filosofia Política pela mesma instituição. Péssimo em autodescrições. Email: tuliomadson@hotmail.com

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