Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 19 de novembro de 2015

A dor da gente não sai no jornal

postado por Carta Potiguar
“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. John Donne, Meditações VII.

Por Renato K. Silva (Escritor e Doutorando em Ciências Sociais)

Os recentes ataques terroristas promovidos pelo Estado Islâmico ocorridos na última sexta-feira (13/11), nas ruas de Paris, com mais de 120 vítimas, reacendeu uma macabra onda de comparações de tragédias sobretudo nas redes sociais. Não bastasse a estupidez e a postura ignóbil de tais comparações, tal qual ocorrera no início do ano com os ataques ao periódico Charlie Hebdo, quando a campanha “Je suis Charlie” transbordou as redes sociais e ganhou à civilização Ocidental, a da última sexta-feira trouxe o mesmo estreitamento de raciocínio e indiferença frente à dor alheia.

Quando se vive uma época onde o luto do Outro é legislado a partir de uma lógica comparativa da quantificação da tragédia, é preciso repensar nossas posturas de uma maneira radical, do contrário, as hecatombes sejam naturais ou antrópicas, serão iguais ao modus operandi de um sinistro filatelista: minhas desgraças são maiores, mais raras e mais numerosas que a suas. Argumenta-se que qualquer incidente na França (leia-se também qualquer país de posição central na produção de bens simbólicos e materiais no capitalismo) seja ele natural ou antrópico, mobiliza milhões de simpatizantes à causa. É evidente que o mundo Ocidental condoer-se-á com as nações pares.

revolQuando falo em pares refiro-me ao conjunto de comunidades imaginadas (nações) erigidas no tripé cultural legados especialmente por: Grécia, Roma e o Cristianismo. A identificação do mundo ocidental frente às tragédias ocorridas na França este ano levanta duas hipóteses: a primeira é que a França carrega um capital simbólico fundando a partir da Revolução (1789) em que a Igualdade, Liberdade e Fraternidade foram a bandeira tricolor que envolveu o novo homem ocidental nascido das cinzas do Ancien Régime, por intermédio das ideias do Iluminismo que despojou o poder civil (Estado) de sua malfadada união com a Igreja. Esta que legitimava a dominação do povo pelas dinastias atribuídas de uma pretensa autoridade divina. Em uma palavra, a Revolução Francesa nos foi ensinada como um “Novo Testamento” na História Mundial. Isso demonstra que mesmo não sendo a grande potência econômica mundial, a França ainda detém uma relativa aura de guardiã dos valores que orientaram e orientam as democracias e, por conseguinte, o modo de vida deste lado de cá do globo terrestre.

A segunda hipótese é uma extensão da primeira e aqui falarei mais detidamente sobre a relação das tragédias na França com sua ampla adesão solidária nas redes sociais. Foi o sociólogo norte-americano Charles Wright Mills que falou: “A história do homem moderno é a história mundial”, com esta sentença construída no frenético decênio de 1960, onde o semiólogo canadense Marshall McLuhan dizia que estávamos vivendo em uma “Aldeia Global”, o homem moderno a partir de então começou a deparar-se com problemas que antes não fazia parte do seu cotidiano, ou se fazia, vinha com um relativo atraso. Dos anos 1960 para cá, com a radicalização do processo de globalização, as fronteiras do tempo e do espaço só fizeram diminuir. Ou seja, a simultaneidade de eventos e fenômenos mundiais não são mais recepcionados com atraso. Eles são recebidos ao vivo em nossas algibeiras por meio dos nossos smartphones. Não só a história moderna passou a fazer parte de nossas vidas como também sentimo-nos parte dela por uma estranha sensação de intimidade que, acredito, seja atribuída à própria proximidade dos dispositivos móveis rente aos nossos corpos.

A narrativa (ou epopeia) do homem contemporâneo é a tecnologia, e esta modifica profundamente nossa relação com o próximo (mesmo distante) e com a história do nosso tempo. As pessoas que modificaram os avatares no perfil Facebook para “Je suis Charlie” ou para o tricolor da bandeira da França que, não é demais lembrar, significa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade é por que a França está mais próxima delas do que por exemplo o município de Mariana (MG); ou de uma hecatombe em Nairóbi, Jacarta ou até de uma chacina da PM na periferia de sua cidade. Ora, se fizermos um breve exercício de investigação, veremos que esta pessoa que mudou o avatar do seu perfil no Facebook, provavelmente fez ou faz um curso superior, se for de humanas, a bibliografia que lê é eminentemente francófila assim como a literatura e os filmes da nouvelle vague que usufrui.

Então quer dizer que a compressão do tempo e espaço na história mundial que é a história do homem contemporâneo é seletiva? Sim, é seletiva porque o mercado de bens simbólicos é dominado por grupos e corporações multimídias que enfatizam certas notícias e certas reportagens em detrimento de outras. Se não mostra uma chacina da PM ocorrida na periferia de uma capital brasileira é porque há interesses envolvidos para que não se veicule tais informações. Outra, o Facebook é uma multinacional – de origem estadunidense – e ela cria os avatares que lhe interessa. Porque a empresa de Mark Zuckerberg não cria avatares contra a Prisão de Abu Ghraib ou a Base de Guantánamo? Acredito que não é do interesse da empresa arrumar briga com Washington.

Em suma, o que não dá para aceitar é o pensamento vil de fazer comparações de tragédias ou pôr o dedo em riste no teclado bradando ou compartilhando informações desta natureza: “a França está colhendo os frutos do intervencionismo no Oriente Médio”, como se a barbárie da intervenção francesa justificasse a barbárie do Estado Islâmico. Ou também desdenhar da dor alheia por achá-la alienada das dores nacionais. Não há alienação na dor tampouco hierarquia. Se a dor do outro não lhe diz nada ou se acreditas que ela seja pura vaidade, o mínimo que deves fazer é silenciar diante dela e não tripudiar porque quando banalizamos a dor do Outro, por extensão, estamos banalizando a nossa.

Carta Potiguar

Conselho Editorial

5 Responses

  1. Vantiê Oliveira disse:

    https://www.youtube.com/watch?v=TGFwbgMndew

    A partir desta análise elaborada por um dos maiores estudiosos da mídia internacional na contemporaneidade – Noam Chomsky, podemos propor uma reformulação deste artigo – de modo a torná-lo mais assertivo, no que concerne à realidade do jogo de “forças comunicativas” em nossa época – pinçando e criticando os seguintes trechos (colocarei os trechos do artigo entre aspas e as críticas sugeridas após um asterisco):

    – “Quando falo em pares refiro-me ao conjunto de comunidades imaginadas (nações) erigidas no tripé cultural legados especialmente por: Grécia, Roma e o Cristianismo. A identificação do mundo ocidental frente às tragédias ocorridas na França este ano levanta duas hipóteses: a primeira é que a França carrega um capital simbólico fundando a partir da Revolução (1789) em que a Igualdade, Liberdade e Fraternidade foram a bandeira tricolor que envolveu o novo homem ocidental…”

    * Destaque-se a ideia de “capital SIMBÓLICO”, bem apropriada, pois, na PRÁTICA, o tratamento discriminatório que a Europa tem destinado aos imigrantes/refugiados de países desestabilizados por muitas das políticas deste mesmo Ocidente, demonstra que isto não passa de mera “simbologia”. O mesmo pode-se dizer do fenômeno da existência de grandes grupos de “cidadãos de segunda classe” no seio destas sociedades , tanto nos banlieus parisienses, como nos guetos negros dos USA, p. ex.

    – “Em uma palavra, a Revolução Francesa nos foi ensinada como um “Novo Testamento” na História Mundial”.

    *Très bien! A grande revolução burguesa, en fait, não passou da substituição de uma ordem dogmática religiosa por uma ordem dogmática supostamente laica. Tanto, que quem quer que questione minimamente o caráter de mero artigo de fé dos seus princípios, é logo estigmatizado como um “herege” do culto ao Estado moderno.

    – “A segunda hipótese é uma extensão da primeira e aqui falarei mais detidamente sobre a relação das tragédias na França com sua ampla adesão solidária nas redes sociais. Foi o sociólogo norte-americano Charles Wright Mills que falou: “A história do homem moderno é a história mundial”….

    * ou seja, uma afirmação “sociológica” claramente preconceituosa quanto às histórias de outros povos, como se a luta ainda em curso do capitalismo ocidental para se tornar o modo civilizatório absoluto – para impor “o fim da história”, como quer Fukuyama -, já seja vitoriosa, desconsiderando as resistências em curso contra este projeto de dominação universal.

    – “Ora, se fizermos um breve exercício de investigação, veremos que esta(s) pessoa(s) que mudou(ram) o(s) avatar(es) do(s) seu(s) perfil(s) no Facebook, provavelmente fez ou faz(em) um curso superior, se for de humanas, a bibliografia que lê é eminentemente francófila assim como a literatura e os filmes da nouvelle vague que usufrui.”

    * voilá: a colonização mental – “evangelização” -, via academias e acadêmicos “crentes” – na melhor das hipóteses – nas simbologias doutrinárias e falaciosas do capitalismo ocidental – e, portanto, pré-conceituosos quanto às histórias e culturas dos povos “não modernos”, os “marginais da história” – incluindo aí os nossos originários povos indígenas!

    – “Então quer dizer que a compressão do tempo e espaço na história mundial que é a história do homem contemporâneo é seletiva? Sim, é seletiva porque o mercado de bens simbólicos é dominado por grupos e corporações multimídias que enfatizam certas notícias e certas reportagens em detrimento de outras.”

    * Afinal, estamos falando de colonização mental, não?
    – “Outra, o Facebook é uma multinacional – de origem estadunidense – e ela cria os avatares que lhe interessa. Porque a empresa de Mark Zuckerberg não cria avatares contra a Prisão de Abu Ghraib ou a Base de Guantánamo? Acredito que não é do interesse da empresa arrumar briga com Washington”

    * Aqui, começamos a lembrar que a Terra é redonda e divide-se em dois hemisférios…

    – “Em suma, o que não dá para aceitar é o pensamento vil de fazer comparações de tragédias… Não há alienação na dor tampouco hierarquia”

    * Se os dois hemisférios da Terra integram um mesmo globo, forma que, por definição, não tem nem em cima nem embaixo, então, por que todas as nossas representações oficiais – inclusive acadêmicas – do globo colocam o Norte acima do Sul…?.

    – “Se a dor do outro não lhe diz nada ou se acreditas que ela seja pura vaidade, o mínimo que deves fazer é silenciar diante dela e não tripudiar porque quando banalizamos a dor do Outro, por extensão, estamos banalizando a nossa”

    * Eis “o gran finale” que peca apenas em um detalhe: aos invés de endereçar-se para os “colonizadores mentais” – os “doutrinadores” do falacioso simbolismo revolucionário – a serviço da dominação universal do capitalismo ocidental, parece dirigir-se indiscriminadamente a tod@ @s que, em alguma medida – como Noam Chomsky, p. ex., procuram denunciar a desigualdade deste jogo internacional de forças comunicativas. Em suma: quem veio primeiro, a abertura da cloaca ou o impulso de excreção do galinácio?

    Concluindo: não é à toa que intelectuais com posturas como a de Noam Chomsky são minoria absoluta nos meios acadêmicos internacionais…

  2. Vantiê Oliveira disse:

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    CHOCKING VIDEO! THIUS IS THE REAL TERROR! BOMB A SCHOOL IN SYRIA; WHY????Posted by Palestina on Terça, 17 de novembro de 2015

  3. Renato K. Silva disse:

    Vantiê Oliveira,

    Primeiramente, não costumo responder comentários sobre o que publico, mas abrirei uma exceção com seu comentário simplesmente por que você colocou palavras no meu texto atribuindo plurais onde não há (citação sua do meu texto). “Ora, se fizermos um breve exercício de investigação, veremos que esta(s) pessoa(s) que mudou(ram) o(s) avatar(es) do(s) seu(s) perfil(s) no Facebook, provavelmente fez ou faz(em) um curso superior, se for de humanas, a bibliografia que lê é eminentemente francófila assim como a literatura e os filmes da nouvelle vague que usufrui.” Acho que seria honesto você citar o meu texto como ele foi escrito, no singular, senão, a lógica multicultural que tanto propalas no seu extenso e hipostático comentário, estará sendo comprometida por uma das coisas que os multiculturalistas mais abomina: a intervenção indevida na fala do Outro.

    Outra coisa, vi o vídeo do Noam Chomsky que você disponibilizou e perguntei-me: onde Chomsky discorda do meu texto? Confesso que a fala do teórico norte-americano e o texto vão em consonância. Se você bem se lembra do vídeo, Chomsky fala sobre a seletividade das notícias quando se refere ao esquecimento dos ataques a um periódico na antiga Iugoslávia (16 jornalistas mortos), durante a Guerra de Kosovo, e a alta exposição dos assassinatos dos jornalistas do Charlie Hebdo (“o maior ataque terrorista ao jornalismo que se tem memória”, como Chomsky relata na fala de um interlocutor político), como memórias seletivas na disputa no interior do mercado de bens simbólicos, ou “forças comunicativas” como você fala. No fundo, Chomsky está falando de seletividades das notícias. E o meu texto fala disso especificamente no 6º parágrafo.

    Seu comentário desvirtua meu texto, ora, se você se amparou no vídeo de Chomsky para criticar o meu texto, ou estás de má-fé, ou com uma ideia fixa de um multiculturalismo confuso, ou não o entendeu direito. Prefiro acreditar na última opção. Pois, você confunde um conceito caro à sociologia bourdiesiana “Capital Simbólico” com “Simbologia” e, o mais estranho no contexto, traz o problema dos refugiados (que eu prefiro chamar de exilados políticos) na França e os negros que moram em guetos dos EUA! De onde você viu esta relação? Tentarei ser mais claro agora: quando me refiro à centralidade da França na produção de bens imateriais, que gera uma maré montante de solidariedade às vítimas sobretudo nas redes sociais, estou falando de uma arbitrariedade histórica que foi alçada à ideologia, por conseguinte, “naturalizada” a partir dos sucessivos processos de colonização (aqui refiro-me também a vida acadêmica) especialmente nas Américas, África e Ásia o que leva, em grande medida, a uma maior proximidade simbólica ao que acontece na França, e não em Nairóbi, Jocasta ou Mariana (MG) como diz no texto que, aliás, é o cerne da discussão – a relativização da seletividade do luto nas redes sociais a partir de uma maior identificação com os ataques na França por conta de uma arbitrariedade histórica específica –: a construção do país de Balzac como o bastião das instituições democráticas modernas por meio da centralidade da razão na vida civil. A história aponta que isto é arbitrário por conta das políticas sobretudo externas da França serem, no passado, colonizadoras e hoje intervencionistas, o que configura uma aberração republicana – uma dimensão tão propalada como grande virtude francesa.

    Por falar nesta arbitrariedade, sugiro que leias: Crítica da Imagem Eurocêntrica (STAM, Robert & SHOA, Ella. São Paulo: Cosac Naify, 2006), neste livro você ficará a par das estratégias construídas para a dominação perpetradas pelos países centrais – Europa Ocidental e EUA – sobretudo para dominar os países periféricos por meio do mercado de bens imateriais. Nele você verá nitidamente como a América Latina é uma invenção francesa do séc. XIX e, acima de tudo, vai ver que quando falo sobre mundo ocidental estou falando também de uma arbitrariedade histórica que muitas vezes é confundida com francofilia, ocidentalismo ou: “a colonização mental – evangelização -, via academias e acadêmicos crentes…” como você atribuiu indevidamente ao trecho que falo sobre a identificação (no contexto de luto) que as pessoas tiveram com os ataques na França.

    Por fim, você falou que a frase do C. W. Mills é “claramente preconceituosa quanto às histórias de outros povos, como se a luta ainda em curso do capitalismo ocidental para se tornar o modo civilizatório absoluto – para impor ‘o fim da história’, como quer Fukuyama…” De onde você tirou esta relação? Mais uma vez, seu multiculturalismo é confuso e tem uma monomaníaca inclinação para a ideia fixa. A frase do Mills está localizada no contexto do início da globalização dos anos 1960, assim como a expressão de McLuhan, “Aldeia global”. Acho que você precisa ler C. W. Mills para tirar esta visão equivocada sobre sua obra. Não custa nada fazer uma breve pesquisa sobre o autor. Sugiro que comeces por, A imaginação sociológica. Um detalhe, de onde você foi tirar Fukuyama num contexto que falava sobre os anos 1960? Se você não se lembra, o livro que o filósofo nipo-estadunidense fala sobre o tema é O fim da história e o último homem e chegou no Brasil em 1992, o texto original é de 1989.

    Enfim, seu comentário foi no todo uma busca por corroborar ideias pré-concebidas no seu espectro teórico que, à maneira de Procusto, tentou aprisionar meu texto e forçá-lo a dizer aquilo que você queria ouvir/ler. Mas, se querias de fato discordar dele, porque não escreveste uma réplica de maneira sóbria e honesta e enviou à redação da Carta Potiguar. Eu teria muito gosto de lê-la, e se fosse o caso escrever uma tréplica.

  4. Vantiê Oliveira disse:

    Renato K. Silva:
    Primeiro, sinto-me “honrado” com a sua condescendência ao abrir uma exceção para responder a um comentário sobre um texto que dispuseste à apreciação do grande público. Muito Obrigado.
    Coloquei plurais em um trecho do seu texto porque, não sei se compreendeste, o objetivo da minha crítica é “propor uma reformulação deste artigo – de modo a torná-lo mais assertivo, no que concerne à realidade do jogo de “forças comunicativas” em nossa época. E, neste sentido, uma das compreensões mais importantes a serem frisadas, é que trata-se ai de um processo que abrange grandes massas (com todas as variações do “espectro” social que isto comporta), e não apenas um “tipo social” estrito.Enfim, me propus a fazer uma “reescrita” do seu texto e, desta maneira, o comentário que publiquei é uma reinterpretação, e não uma reprodução.
    “Intervenção indevida na fala do outro” seria, mais propriamente, atribuir-lhe uma etiqueta – um estigma – qualquer, a priori, como é o caso quando você me atribui a pecha de “multiculturalista”, adesão teórica que em nenhum momento eu declarei (até porque minha filiação teórica é a uma tradição de pensamentos e práticas muitos mais antiga – e, portanto, muito mais amadurecida pelas provas do tempo).
    A linha principal da minha crítica centra-se na compreensão de que, no seu texto, se, por um lado, você parece criticar a dominação global das potências do Ocidente, por outro, você se demonstra dúbio, ao propor a ideia de que relativizar os sofrimentos dos povos do Ocidente devido aos ataques terroristas contrapondo a isto o sofrimento de povos submetidos às atrocidades cometidas por este mesmo Ocidente seria algo repudiável, segundo suas próprias palavras:
    “Os recentes ataques terroristas promovidos pelo Estado Islâmico ocorridos na última sexta-feira (13/11), … reacendeu uma macabra onda de comparações de tragédias sobretudo nas redes sociais. Não bastasse a estupidez e a postura ignóbil de tais comparações,… a da última sexta-feira trouxe o mesmo estreitamento de raciocínio e indiferença frente à dor alheia”.
    “Em suma, o que não dá para aceitar é o pensamento vil de fazer comparações de tragédias ou pôr o dedo em riste no teclado bradando ou compartilhando informações desta natureza: “a França está colhendo os frutos do intervencionismo no Oriente Médio”, como se a barbárie da intervenção francesa justificasse a barbárie do Estado Islâmico. Ou também desdenhar da dor alheia por achá-la alienada das dores nacionais. Não há alienação na dor tampouco hierarquia. Se a dor do outro não lhe diz nada ou se acreditas que ela seja pura vaidade, o mínimo que deves fazer é silenciar diante dela e não tripudiar porque quando banalizamos a dor do Outro, por extensão, estamos banalizando a nossa.”
    Pelo exposto, fica claro que sua postura é a de afirmar que a dor dos primeiros não pode ser relativizada pelo fato de que estes provocaram e provocam dores nos segundos (aqui cabe mais uma reelaboração do discurso: a ideia de “unidade nacional” é falaciosa, pois, os verdadeiros condutores de todos estes processos em pauta não são a porção majoritária dos cidadãos comuns vitimados pelos ataques, mas sim os grupos dominantes em suas sociedades).

    Ora, é aqui onde se localiza a diferença entre a perspectiva que Chomsky aponta e a sua: segundo Chomsky, o que as grandes empresas de comunicação fazem é simplesmente um verdadeiro apagamento das dores dos “outros” (os oprimidos pelas potências ocidentais).Antes, ao menos, fizessem alguma comparação… Nas palavras de Chomsky (aos 7:20′ do vídeo): “Memória é uma categoria cuidadosamente construída” através da ação midiática, “para incluir os crimes deles contra nós, e excluir os nossos crimes contra eles…” E ele continua, dizendo que isto é parte de “uma doutrina muito mais ampla, que é seguida com uma dedicação e consistência impressionantes”. E enfatiza, durante esta fala: “crimes” – os das potências ocidentais contra os povos dominados – “com frequência, piores” – do que os dos povos dominados contra as potências Ocidentais…
    Ou seja, aqui Chomsky adota uma perspectiva divergente da sua ao propor que este apagamento das dores dos outros da memória coletiva (a “seletividade das notícias”, como você assim define),trata-se de um processo ativo de dominação e realização de um projeto de poder empreendido como um esforço conjunto e coerente de grupos específicos da sociedade, cujos interesses convergem em torno deste projeto, ao invés de ser algo como que a resultante de posturas pulverizadas e individualizadas, conforme você dá a entender em trechos como este:
    “… Outra, o Facebook é uma multinacional – de origem estadunidense – e ela cria os avatares que lhe interessa. Porque a empresa de Mark Zuckerberg não cria avatares contra a Prisão de Abu Ghraib ou a Base de Guantánamo? Acredito que não é do interesse da empresa arrumar briga com Washington.”
    E – para retomarmos o ponto central da discussão: a atitude de fazer “comparação de tragédias” – a diferença entre a proposição de Chomsky e a do seu texto vai além, no momento em que o teórico estadunidense afirma que os atos de agressão das potências ocidentais contra os povos que elas oprimem constituem-se em “crimes, com frequência, piores” (que as agressões dos “outros”). Então, para Chomsky, há que se comparar sim! E nesta comparação, as dores dos “outros” talvez devam ser vistas como “piores”. Senão, como pensar a situação de um povo que não dispõe de forças militares altamente organizadas e equipadas, como é o caso dos palestinos, ao serem submetidos a um longo e sistemático processo de extermínio, por parte de forças militares das mais organizadas e potentes do mundo contemporâneo? Podemos afirmar que o extermínio de um povo inteiro não pode ser visto como uma perda maior (até mesmo segundo uma perspectiva numérica, demográfica) do que as que as potências ocidentais têm sofrido neste início de Século? “A resposta, meu amigo, está explodindo agora mesmo em outros ares”, como golpes de grandes massas de ar deslocadas pelas explosões de mísseis de última geração…
    Não se trata de “justificar” a barbárie de uns pelas de outros, mas sim, de apontar processos de causa e efeito. Fazer circular nas redes sociais a informação e a memória de que as potências Ocidentais vêm cometendo “crimes frequentemente piores” contra os outros, há muito tempo, trata-se de uma prática de resistência à estratégia de apagamento da memória coletiva destes crimes piores.
    Quanto à questão da “simbologia”, a minha afirmação (que você, ou não entendeu, ou, de má fé, fingiu não entender devido a uma atitude fundamentalmente avessa a críticas à “civilização ocidental” – prefiro acreditar na segunda hipótese) é a de que os ideais da Revolução Francesa – o “Capital Simbólico da França”, como você boourdieusianamente assim definiu – não passam de meros símbolos, ou seja, construções de ordem subjetiva. Ora, relações sociais concretas são revestidas de sentido através da constituição de imaginários (conjuntos de signos, símbolos, ideias), isto é certo, porém, não se esgotam neles. Em outras palavras: por mais que a França seja identificada e percebida internacionalmente – pelo senso comum – como a pátria da liberdade, igualdade e fraternidade, de modo que tanto turistas que a visitam – como até mesmo muitos que nela habitam – se imaginam livres, iguais e fraternos naquela sociedade, o fato é que, nas suas periferias habitadas majoritariamente por populações que não são “franceses de origem”, isto não sai da dimensão imaginária. O mesmo se dá no caso dos U.S.A. É esta a relação destes exemplos com a sua análise bourdieusiana: sua afirmação do que o capital simbólico francês estabelecido desde a Revolução seria o fator preponderante que torna as populações ocidentais mais tendentes a se solidarizarem com as dores deste povo do que as dores dos “outros”, não problematiza minimamente a falácia desta simbologia no que concerne a realidade social dos detentores deste “patrimônio”, assumindo assim uma postura tendencialmente acomodada com relação a isto. Quando compreendemos que a dimensão simbólica do social não esgota o real, podemos perceber melhor os movimentos concretos de resistências ao status quo, bem como reforçá-los, se a isto nos inclinamos. E aqui eu aproveito para retomar o problema das populações em fuga para a Europa – e rechaçadas por esta: estas populações não estão em fuga apenas por motivos políticos, mas também por motivos econômicos e/ou de catástrofes supostamente “naturais” e, por isto, penso não ser adequado designar-lhes como “exilados políticos” (visto que este termo faz alusão a grupos com direitos reconhecidos), mas sim como populações buscando refúgio de catástrofes humanitárias.
    Sobre a “arbitrariedade histórica que muitas vezes é confundida com francofilia, ocidentalismo ou: “a colonização mental – evangelização -, via academias e acadêmicos crentes…””, quem falou em “francofilia” entre pessoas com formação superior na área de humanas foi você mesmo! Cito: “Ora, se fizermos um breve exercício de investigação, veremos que esta pessoa que mudou o avatar do seu perfil no Facebook, provavelmente fez ou faz um curso superior, se for de humanas, a bibliografia que lê é eminentemente francófila assim como a literatura e os filmes da nouvelle vague que usufrui.” Daí, a conclusão sobre a “colonização mental – evangelização – via academias…”, que eu propus, além de ser evidente, é lógica.
    E, já que o mote desta discussão é o tema do terrorismo em relação aos discursos arbitrários de legitimação do ponto de vista dos opressores construídos e difundidos pelos grandes médias, aproveito para – também – lhe fazer uma sugestão de leitura: “La Stratégie du Choc”, de Naomi Klein. Através deste livro você ficará a par da tática de promoção de uma nova estratégia para sustentar o recente ciclo de dominação e exploração dos ricos sobre os pobres, que está por trás da atual grande frequência de ocorrência de eventos que provocam grande comoção social. Aliás, a esse respeito, uma questão que se deve colocar – e que a grande mídia tem secundarizado – é: por que, mesmo sabendo-se do alto risco de vida que os integrantes do Charlie Hebdo corriam, bem como, mesmo os serviços de inteligência conhecendo e rastreando há muito tempo os autores dos recentes atentados em Paris, mesmo assim, a segurança daqueles jornalistas foi relaxada, como também os terroristas da noite da Sexta Feira 13 conseguiram entrar em Paris, vindos de outro país europeu, a Bélgica…?!
    Por fim, quando você afirma que não se pode propor relações entre pensamentos de autores que publicaram obras na década de sessenta e pensamentos de autores que publicaram obras nos anos noventa, demonstra um formalismo acadêmico rígido, além de (conforme venho sugerindo desde o meu primeiro comentário, ao propor uma reformulação do seu texto) uma evidente dubiedade em sua suposta postura crítica da dominação capitalista ocidental. Ora, é de conhecimento geral que este processo de dominação vem sendo construído há séculos e que, assim, não é de surpreender que formulações teóricas elaboradas no seio deste processo – porém, em momentos e/ou etapas diferentes deste -, possam – em que pese as suas distinções de abordagens e conceitos, segundo o contexto -, relacionar-se estreitamente entre si, no que concerne à “visão de fundo” que adotam sobre o mundo. Como diz Noam Chomsky (de novo ele), desde a antiguidade que a função dos intelectuais alinhados ao status quo é fazer parecer mais complicado coisas que no fundo são muito simples. E a academia é uma das grandes agências desta estratégia no capitalismo.
    Enfim, seu artigo é, por um lado – conforme você deixou mais claro em sua réplica agora -, todo um esforço para afirmar uma suposta crítica aos mecanismos de dominação e colonização mental implementados pelas potências capitalistas ocidentais via grande mídia; enquanto que, por outro lado, se configura como uma justificação de uma postura conformista (no mínimo) ante esta dominação, ao tomar o “capital simbólico” estabelecido pelo mundo burguês europeu como algo “dado” e que justifica, por si só, a adesão das grandes massas de cidadãos ao ponto de vista destes grupos dominantes (como se não existisse, de um lado, uma ação contínua e continuada de atualização desta dominação e, de outro lado, uma re-ação contra isto). Além de, ainda por cima, fazer uma explícita condenação de uma postura minimamente crítica (mesmo que passível de ponderações) em relação a esta colonização mental, que é a atitude de muitos internautas de se contraporem à ideia dominante de que os únicos “bárbaros” e “incivilizados” dos conflitos em pauta são “os outros”, ao fazerem (estes internautas críticos) circular na rede a ideia de que todos estes lamentáveis atos de violência provavelmente estão enraizados em outros anteriores – e talvez até “piores” -, perpetrados pelo “civilizado” Ocidente europeu contra os povos nos quais se originam estes odientos fanáticos. E o pior é que você condena este esboço de crítica aos discursos dominantes em nome de um (pre)suposto humanismo, que se apóia na ideia de que “não há alienação na dor tampouco hierarquia”. Se é assim, por uma “questão de ordem”, ao invés de se dirigir aos cidadãos simples que veiculam na rede a aludida contraposição crítica, você precisaria comunicar isto para os “donos do mundo” (para utilizar uma expressão do Prof. da Sorbonne e escritor, Jan Ziegler), que alienam e hierarquizam as dores dos povos, destacando em suas mídias os crimes cometidos pelos “outros” contra as potências capitalistas e excluindo destas mesmas mídias os crimes cometidos pelas potências ocidentais contra “os outros”. Como também você precisaria avisar aos juristas burgueses de que o princípio da proporcionalidade da pena, segundo o qual alguém que mata mil pessoas merece uma condenação maior do que alguém que mata dez, está em total contradição com o humanismo.
    Seu pensamento, em sua totalidade, aparenta ser um suposto veículo de promoção de discursos críticos quanto à dominação simbólica vigente, porém, ao fim e ao cabo, exerce mesmo é o papel de um instrumento de inibição de algumas posturas críticas quanto a esta mesma dominação em causa.
    Por isto que, ao contrário de Procusto, decidi “abrir os nós” d’(escancarar) as contradições do seu texto, forçando-o a sair da caixa formal e se posicionar decididamente, sem dubiedades e/ou meios termos.
    Até uma próxima, talvez.

  5. Vantiê Oliveira disse:

    P.S: meus comentários são “hipostasiados” (palavrinha empolada, hem?) porque não quero tratar com superficialidade e leviandade um tema tão sério e, ainda, resolvi enviá-los como comentários ao seu texto (e não como outros textos na página de abertura) porque, afinal, é deste seu primeiro aqui (texto publicado logo acima) que estamos tratando…

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