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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 24 de setembro de 2019

A TEORIA SOCIOLÓGICA E AS CIÊNCIAS SOCIAIS

postado por Carta Potiguar

Alipio De Sousa Filho,

Professor e Diretor do Instituto Humanitas – UFRN.

Pesquisador do CNPq. Doutor em Sociologia pela Sorbonne – Paris V.

 

A teoria sociológica está para a constituição das ciências sociais assim como a teoria da evolução humana está para o desenvolvimento de todas as ciências modernas, da biologia à neurociência contemporânea, passando pelas diversas ciências humanas, desde o século XIX até nossos dias. Ou ainda, a teoria sociológica está para a constituição das ciências sociais assim como o persa Ibn-Khaldun (no século XIV) está para a gênese da própria teoria sociológica pelas mãos de Émile Durkheim (nos séculos XIX e XX), ou ainda: assim como a teoria do Big Bang está para a Cosmologia.

A teoria sociológica precede a todas as teorias e áreas em ciências sociais (antropologia ou ciência política) porque é ela que traz consigo, em primeiro lugar, uma teoria da realidade social, e, em segundo lugar, uma teoria específica do que chamamos “sociedade”, e sem as quais não haveria nem uma teoria da cultura (antropologia) nem uma teoria do poder ou do Estado (ciência política). Desse modo, precedente a todas as demais teorias, a teoria sociológica não apenas é epistemologicamente primeira para a formação científica na área das ciências sociais, ela é precedente também do ponto de vista mesmo de uma ontologia do ser social e de alcance geral se se observar seus fundamentos, pressupostos e premissas.  E, por isso, a teoria sociológica é precedente do ponto de vista da aquisição do conhecimento sobre o que é a realidade social para qualquer um, que seja alguém que se dedique à vida acadêmica de estudos, que seja alguém que simplesmente queira ler e compreender o mundo social no qual vive.

Não há, na história das ciências sociais, nenhum caso de especialização em temas e objetos particulares de pesquisa e estudo, em áreas como antropologia ou ciência política, ou até mesmo no âmbito do estudo sobre o psiquismo inconsciente, como no caso de Freud, sem uma compreensão do que seja “sociedade”, “instituição social”, “relações sociais”, “estrutura social”, “ideologia”, entre outros conceitos; todos produzidos e discutidos no âmbito da teoria sociológica, por excelência uma teoria geral sobre o que é a sociedade humana e o ser social humano. Embora constituída por diversos enfoques, estes não são diversas “teorias”, ainda quando divergentes, mas abordagens de um mesmo esforço teórico-científico de produzir a compreensão da vida humana, sempre coletiva, social, e em suas diversas formas na história e na diversidade cultural, e a compreensão da existência humana nos diversos sistemas de sociedade e cultura existentes. Uma teoria do social, ao final de tudo! Uma teoria sociológica! E para quem achou estranho que eu cite Freud, porque nunca o leu!, que saiba que ele foi o primeiro a dizer que “o inconsciente é social”, que o psiquismo humano se constitui nos processos sociais, nas interações intersubjetivas interindividuais. Freud foi um leitor de Durkheim, criador da teoria sociológica na Europa moderna, e foi um leitor e crítico de Marx e do materialismo histórico. Surpreendentemente Freud é um dos primeiros a chamar atenção para as relações entre inconsciente e ideologia. E o faz sem margem para ambiguidades… É ler seus textos!

Sem que essa história seja por agora de interesse, o certo é que, sem o conhecimento adequado em teoria sociológica, isto é, sem o conhecimento adequado em uma teoria da realidade social e dos sistemas humanos de sociedade, o mais comum é vermos análises truncadas em antropologia e em ciência política, seja por queda num culturalismo ou num relativismo absoluto – que mais não são do que quedas no discurso ideológico cultural, ou na ideologia tout court -, seja por derrapagens em análises sobre o fenômeno do poder e da política como aspectos muitas vezes examinados como se estivéssemos diante de uma ciência sem sociedade – na ciência política, o chamado “individualismo metodológico” ou a “teoria dos jogos” são exemplos.  Para algumas abordagens que sofrem de reducionismo teórico ou de determinismo dogmático ou ainda de racionalismo estreito, não é difícil reconhecer a falta de uma boa teoria da realidade social, uma boa teoria sociológica que fundamente a análise do que se pretende compreender como fenômenos sociais, vida social etc.

Nada se pode compreender como “cultura”, “poder”, “política”, “Estado”, “simbólico”, “imaginário” ou ainda “subjetividade”, “gênero” ou “sexualidade” se não se conhece e sabe-se empregar com proficiência uma teoria da realidade social e da sociedade que tornem possível entender cada um desses fenômenos, objetos e conceitos. Razão porque é temerário entregar a análise da realidade social (como muito se vê hoje nas chamadas “redes sociais”… terra de ninguém, cheia de especialistas de tudo, mas sem o conhecimento teórico-científico sobre coisa alguma…) e igualmente o ensino dessa análise em escolas e universidades àqueles que estão em dívida com o conhecimento sociológico ou que estão em atraso com relação à sua constante atualização. Para o caso do ensino universitário, o prejuízo maior é a precária formação (quando não a deformação) de estudantes que, formados em licenciaturas diversas, saem, posteriormente, para o ensino na escola básica com profundo déficit de conhecimento sobre assuntos básicos para toda análise científica do da realidade social por deficiência em conhecimento sociológico, em teoria sociológica. Como imaginar, por exemplo, que alguém possa ensinar bem algum assunto como “gênero” ou “sexualidade” sem uma boa teoria sociológica do que seja sociedade, instituição social, relações sociais, dominação, padrões sociais, papéis sociais? Não raro, todavia, temos os muitos casos de “ciências” ou de “novas abordagens” ensinadas nas graduações universitárias que simplesmente subtraem dos estudantes o conhecimento sociológico e histórico para assuntos sobre os quais, sem esse conhecimento, o que temos como resultado é pensamento mutilado, indigente, sem rigor e qualidade, que concorrem para a reprodução pura e simples do senso comum social, afastado do modo científico de pensar que se deve ensinar nas escolas e universidades.

Afirmar que a teoria sociológica é apenas uma disciplina entre outras das ciências sociais, ou uma “área” específica, é desconhecimento ignorante de sua natureza de fundamento geral para todas as teorias científicas do social, da cultura, da política, sobre o indivíduo, subjetividade, singularidade etc. Trata-se de uma teoria mais geral que todas as demais, mais abrangente, articuladora de um amplo conjunto de conceitos e análises, que se tornou o próprio fundamento teórico de diversas outras ciências e teorias científicas nas ciências humanas. Ciências sociais sem teoria sociológica é como neurociência sem uma teoria do cérebro.

Assim, não é demais repetir, o conhecimento em teoria sociológica é condição necessária para o conhecimento em todos os demais domínios em ciências sociais. E a competência em teoria sociológica habilita ao trabalho do pensamento que permite a apreensão, por meio de processos cognitivos diversos e combináveis, de fenômenos e objetos de estudo nos mais diversos âmbitos da realidade social e nas diversas áreas das ciências humanas.

 

 

 

Carta Potiguar

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