Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 17 de novembro de 2019

A IMAGINAÇÃO COMO CORINGA

postado por Carta Potiguar

Alipio De Sousa, Professor e Diretor do Instituto Humanitas/UFRN.

    Coringa é um filme político. Ambientado numa fictícia sociedade dos anos 1970, é propositalmente (pelas mãos de Todd Phillips, o diretor) o retrato de sociedades que continuam as mesmas nos dias atuais. O filme é uma denúncia das violências dos sistemas de sociedade que são os nossos e seus efeitos destruidores de pessoas, grupos, classes. Violências praticadas por suas instituições, estruturas econômicas, poderes políticos, injunções morais e discursos ideológicos, que submetem a todos nós como indivíduos, porém, incidindo especialmente mais sobre alguns. Todos sabemos, as violências desses sistemas incidem de forma mais intensa, profunda, cruel e danosa sobre aqueles que vivem em condições de exclusões sociais e marginalizações, seja por situações de pobreza econômica ou rebaixamento de status social, seja por suas “exceções” em relação a normas ou padrões sociais, tornando-os objetos de preconceito, discriminação, estigmas, patologizações de suas condutas. Exemplos não faltariam! E, ainda, não raramente favorecidos por essas próprias condições, sejam adicionados os casos de abusos físicos, sexuais, psicológicos aos quais vários indivíduos são submetidos, que se tornam fontes de traumas e distúrbios diversos, que os invadem e que se expressam em sinais e sintomas que, em alguns casos, poderiam ser lidos como prenúncios (mas que a ordem ideológica decide não enxergar ou escutar, tal como, no filme, a médica burocrática do Arkham State Hospital) de atos destrutivos e danosos a si e a outros.

Mas Arthur Fleck não feriu nem matou ninguém. Ele não se transformou num criminoso, não se tornou o “palhaço do crime”.  Em sua frágil sanidade mental, ele não fez a “passagem ao ato”. É a sua imaginação, por vezes delirante, loucamente delirante, que é o seu “coringa”. Como a carta do baralho, a imaginação é a substituta (no “jogo” das relações sociais) que o salva (do crime; embora não de seus tormentos). Aliás, porque também ele já está internado num hospital, sua prisão. Enquanto as cenas se desenrolam e causam a impressão que Arthur Fleck age ou narra “o que teria feito” à terapeuta burocrática (ou à assistente social), tudo ele “viveu” (“fez”, “praticou”) em sua imaginação, quando, então, ele é o Coringa. Coringa de si mesmo, tentando heroificar-se para enfrentar aqueles que o violentam, representantes de um sistema que o violenta. Violentado, não faz a “passagem ao ato” senão na potente imaginação. Internado, o Coringa é a imaginação de Arthur Fleck (Joaquim Phoenix), sua arma de defesa, seu escape, sua fuga. E mesmo imaginário, o revólver que manuseia não é a sua arma, pois é pura paródia, não é ela que lhe serve, ele a deixa cair, entre crianças, infantilmente. Sua verdadeira arma é a imaginação.

Para sobreviver à violência social, Arthur Fleck fantasia na imaginação. A revolta com o sistema de sociedade que hospeda as violências que o maltratam ganha materialidade na fantasia do “Joker”, que oferece a Arthur Fleck a liberdade que este sabe não poder usufruir como gostaria, até à eclosão da fantasia de um movimento social de revoltados palhaços. Movimento icônico antissistema. Não é de “palhaços” que são chamados todos os heresiarcas da ordem moral e ideológica que nos constrange com suas hipócritas instituições, apresentadas como insubstituíveis, necessárias, funcionais, quando são inteiramente revogáveis, em seu lugar podendo outras existirem e melhores e por nossas próprias decisões? Fantasiado de Coringa, Arthur Fleck, desajeitadamente, dança. Não importa. Sua dança desajeitada são os movimentos de um corpo que quer se inventar, sem controle, e deseja se atirar ao ar em fantasia, tal como fantasiou o acolhimento, o amparo, o amor, que nunca teve, nem familiar, nem social. O Coringa conhece a lição de Zaratustra: “Apenas na dança sei falar o símile das coisas mais altas” – é a imaginação coisa mais alta! Subversiva, criadora, transformadora. E também assim falou Zaratustra: “Deixemos de lado … tudo que nos impede o movimento! É preciso saber dançar!

  Ver no personagem Coringa um “palhaço do crime” que, “erroneamente”, teria sido idealizado e romantizado como herói por Todd Phillips, e, para alguns, um psicopata que deveria ser condenado, odiado (certas mentes gostariam que esta fosse a “mensagem” do filme…), não é mais que expressão da mentalidade que é – ela própria –  fonte de toda violência social que o filme denuncia. Os clichês psiquiátricos e criminológicos aplicados ao filme são os mesmos que estão disponíveis para aplicação a quem ousa confrontar as opressões, as injustiças, as desigualdades, os abusos de poder e hipócritas convenções, disfarçadas em “normas sociais”, por diversas vias e formas, e que seja pela via do crime, que seja pela via política. Não apenas são acionados para produzir ideologicamente os “anormais”, os “delinquentes”, “sociopatas”, como também são acionados para a invalidação da crítica política à ordem moral e ideológica que sustenta essas mesmas injustiças, desigualdades, opressões, abusos de poder, hipocrisias.

A violência que o maltratou, que o adoeceu, que o enlouqueceu, que o levou a um hospital, não enfraqueceu a imaginação de Arthur Fleck. A resposta que oferece à médica, ao esta lhe perguntar o que estava pensando, após bom tempo sem falar, ali, bem diante dela, é um ato de resistência política, política da imaginação subversiva: “você não entenderia”, ele responde. Ora, o que narrar para alguém que não estava ali para a escuta? A escuta de seu ser que carregava uma longa história de violências… Ele bem sabia que a médica burocrática não era mais que outra vez o mesmíssimo sistema agindo para o controle de seu ser…   Escolheu, ironicamente, subversivamente, imaginar, fantasiar, delirar… E todas as cenas anteriores não eram mais que sua imaginação solta, ele ali, imóvel, diante da médica. Diante da repressão psiquiátrica, do discurso médico, do controle social, resolve dar de ombros, tal a imaginação, a dança, o riso e o canto podem fazer…  É quando ouvimos Frank Sinatra cantando, maravilhosamente, That’s Life: “Algumas pessoas se divertem pisoteando sonhos, mas eu não deixo, não deixo isso me abater”…. e Arthur Fleck, cantando baixinho, levanta-se e dança…

O Ocidente produziu uma longa história de desconfiança e desvalorização da imaginação e do imaginário. Tratados filosóficos ou médicos já a desqualificaram como “loucura”, comparada com a “razão sã”. Tratada como a “louca da casa”, foi cercada de desconfiança, com o que se proibiu ou censurou a literatura, vista como perigosa, por “incentivar a livre imaginação”. Provérbios populares dizem o mesmo: “cabeça vazia, oficina do diabo”. A cabeça vazia é a mente livre, desocupada de pensamentos admitidos e controlados, “imaginando”… Um tal fenômeno social e histórico não passou despercebido por estudiosos como Gilbert Durand e Michel Maffesoli, que apontaram que essa desconfiança com a imaginação é a mãe de todas as tentativas de “análise” e controle dos diferentes graus e regimes de imagens com os quais opera a consciência humana. Uma verdadeira obsessão ideológica iconoclasta de restrição à produção de imagens que proliferam na mente humana.

Imaginar é sempre um antídoto em relação à colonização do nosso pensamento e espírito pela ideologia fixadora de sentidos reificadores da realidade. Imaginar é existir! Assim, se Descartes escreveu “penso, logo existo”, faço aqui o meu trocadilho: imagino, logo existo!  E, assim também, a imaginação nos salva. Podemos, por imaginar, criar outros mundos, outras realidades. E isso é importante. A imaginação é antídoto capaz de transformar, transfigurar, transubstancializar a realidade. Antecipar mundos outros, modos outros de existir. A fantasia imaginante ou a imaginação fantasiosa é, como da fantasia falou a filósofa Judith Bulter, “o que nos permite imaginarmos a nós mesmos e a outros de maneira diferente; é o que estabelece o possível excedendo o real; a fantasia aponta a outro lugar e, quando o incorpora, converte em familiar esse outro lugar”.

O filme Coringa tem uma mensagem política libertária: sem ressignificação ou sublimação, na imaginação, no riso, no canto, na dança, na arte, nos movimentos sociais (dos palhaços heresiarcas), a loucura selvagem que habita cada um de nós poderá transbordar e tomar formas alarmantes. Afinal, o monstro da loucura habita uma recôndita caverna de nossa psique, democraticamente distribuído para todos. Não há ninguém que não o tenha. Como também é bem certo que não se pode deixá-lo sempre preso. Adoecimento certo! É preciso deixar o louco passear um pouquinho… E a imaginação serve também para isso!

Mas enquanto a ordem moral e ideológica se mantiver em sua hipocrisia – tal como na figura do apresentador de TV Murray Frank (Robert de Niro), que sabe bem humilhar ao outro publicamente, mas posa de bom-moço, “homem de bem”, que trabalha o dia inteiro, sacrificando almoço e família –, e permanecer fingindo que não produz danos morais e psíquicos àqueles a quem prejudica, ao exclui-los, violentá-los, discriminá-los, rebaixá-los, manter-se-á sempre frente ao risco da criminalidade como alternativa aos que são jogados em desgraça (como “palhaços”), tanto quanto face às possibilidades de revoltas explosivas.

Diferentemente de comentários que viram no filme um elogio ao “palhaço do crime”, ou sociopatia em seu principal personagem, o Coringa traz uma outra mensagem: a inconformidade com normas sociais injustas, com violências, opressões, abusos de poder, desigualdades, pode ter diversas respostas, diversas resistências; entre elas, a via da imaginação, que, ressignificando a realidade, sublimando a agressividade, domando nosso “louco”, pode converter-se em arte, ciência, filosofia, movimentos sociais etc., que podem ser a salvação de todos nós, e de uma sociedade. E sem que a “passagem ao ato” seja necessariamente algo danoso e condenável: passar ao ato deve também ter seu lugar nas formas mesmas das ações artísticas, políticas, éticas, discursivas, de lutas específicas, e que tenham menos ou mais força explosiva, que considerem ou não apertar o “botão do foda-se”, “chutar o pau-da-barraca”, levantar barricadas…. Precisamos, sim, do coringa da imaginação!

Carta Potiguar

Conselho Editorial

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