Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 3 de dezembro de 2019

O PET de Ciências Sociais da UFRN: nossos malcriados metafísicos canibais

postado por Carlos Freitas

O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento

Adorno & Horkheimer, Dialética do Esclarecimento.

 

Tim Ingold, antropólogo do devir, costuma dizer que a antropologia é uma filosofia com pessoas dentro. E que seus pares obcecados pela etnografia parecem ter esquecido os potenciais criativos nos prazeres mais inúteis do exercício de especular. Também sobre inutilidades, logo depois de demonstrar a riqueza cultural de um inventário de taxonomias e sistemas de classificação em povos indígenas das mais diferentes partes do mundo, em uma passagem do belíssimo ensaio antropológico (e porque não, também filosófico), “O Pensamento Selvagem” (1962), advertiu Claude Lévi-Strauss contra os devotos da santa fé utilitarista:

“De tais exemplos, que poderiam retirar de todas as regiões do mundo, concluir-se-ia, que as espécies animais e vegetais não são conhecidas porque são úteis; elas são consideradas úteis ou interessantes porque são primeiro conhecidas”.

Com essa advertência, o famoso antropólogo francês não só procurava afastar a imagem etnocêntrica do “selvagem” como um ser incapaz de pensar o mundo para além das urgências e do domínio da necessidade, mas também revelava aos ocidentais que nossos diferentes povos não ocidentais eram igualmente competentes na arte de se fazer ciência, ainda que uma “ciência do concreto”.

Décadas depois, Eduardo Viveiros de Castro, nosso antropólogo nacional, internacionalmente mais ilustre, defendeu que nossos povos ameríndios não são apenas  habilidosos cientistas do concreto, mas também criativos filósofos da natureza. Que o perspectivismo ameríndio era capaz de fornecer ontologias alternativas sobre os seres e modos de existir ainda mais sofisticadas e ricas de imaginação e espírito do que grande parte de nossas terminais ontologias ocidentais.

Em tempos diferentes, é certo afirmar que nossos os antropólogos também articularam uma verdade ensinada por nossos povos da floresta: Que não esqueçamos que filosofia ou ciência somente são possíveis quando não nos permitimos nos tiranizar pela lógica da utilidade. Que a melhor ciência e a melhor filosofia nasce da experiência “inútil” do simples sentir e especular sobre o mundo. Que não somos “construtores” úteis de casas, mas habitantes que criam mundos materiais e simbólicos na experiência da ficção. Religiões, mitos, sistemas políticos inteiros não nasceram porque eram úteis, mas se tornaram úteis porque primeiro nasceram.

Essa verdade antropológica e mensagem subversiva é também resistência cosmopolítica. Por essa razão, contra “outras” ciências e outras filosofias, governantes acusam nossos povos ameríndios de “vagabundos” e “inúteis”. Exigem utilidade nos modos de existir dos Tubinambá, pois não encontram economistas ou arquitetos em seus mundos, mas apenas habitações que são obras da ciência do concreto e de filósofos vitalistas. Em suma, como em nossa própria sociedade, também os governantes do presente odeiam todas as práticas que dizem respeito ou lembrem “ciência” pura ou “filosofia”. Que nossos governantes pensem assim não parece tão surpreendente nestes tempos embrutecidos. Equivalência simetricamente trágica, porém, é encontrar nas mais nobres famílias de nossa antropologia branca e ocidental, a mesma narrativa de acusação: “vagabundos” e “inúteis”, assim também são vistos nossos/as estudantes mais talentosamente insurgentes do PET de Ciências Sociais da UFRN. Que, a exemplo, de nossos irmãos ameríndios, resolveram cultivar seus espíritos com ciência e filosofia sem “utilidades”.

Tudo isso, claro, nos leva a questão sobre a possibilidade de traduzir valores e virtudes acadêmicas em termos exclusivamente do que é o “útil”. E o que dizem os indicadores de desempenho acadêmico sobre nossos “vagabundos” e “inúteis” da aldeia-PET das ciências sociais da UFRN? Que nossos “potiguaras” da UFRN colecionam aprovações nos mais prestigiosos programas de pós-graduação do Nordeste e do país. Que praticando ciências sociais e filosofias inúteis vão se tornando os melhores de sua geração e também melhores que seus antigos mestres. Ora, não é esse o verdadeiro imperativo antropotécnico de um Programa institucional de excelência acadêmica na universidade? Formar melhores quadros intelectuais que nós fomos e nós somos?

De fato, historicamente, o PET de Ciências Sociais parece mais comprometido com o imperativo ritual canibalista ameríndio e, por isso, tem insistindo em formar mais “cientistas” e “filósofos” do que engenheiros sociais. E como já foi aprendido pela cosmologia ameríndia, esse não é um bem utilitário imediato! Seu valor não se mede na militância e no engajamento exibido em nome do “bem”! Não são empreendedores morais aqueles que se formam nos PETs de Ciências Sociais. Performatizando inutilidade científica e filosófica, a exemplo dos povos ameríndios, nossos jovens subversivos do PET de Ciências Sociais da UFRN são inúteis porque são aprendizes de metafísicos canibais.

Com suas feitiçarias antiutilitaristas, o PET de Ciências Sociais forja cientistas e filósofos do devir. Um belo bem irredutivelmente elevado!

E sobre pagar oferendas ao Deus-Utilidade, será essa a régua “utilizada” para autorizar a entrada de novos cientistas sociais e antropólogos nas universidades brasileiras? Sinais dos tempos do “Future-se”…Que nossas divindades e seres araweté nos proteja contra os mitos reificadores da má consciência da utilidade. No governo e na universidade!

Carlos Freitas

Sociólogo e Professor Doutor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Interesse por temas de Cultura Política e Sociedade. Contato profissional: calfreitas@hotmail.com

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