Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 10 de junho de 2021

Que a matadeira não atravesse os portais temporais de Rick e Morty!

postado por Joao Paulo Rodrigues

O eterno Cordel do Fogo Encantado fez uma intertextualização maravilhosa, na canção A Matadeira, ao colocar no mesmo cenário o canhão Withworth 32 e a favela. Ele pôs na mesma realidade a “matadeira” retratada por Euclides e as cidadelas, que são as comunidades periféricas.

A impressão que dá é que ainda que existam várias realidades paralelas, nos vários universos existentes, como em Rick e Morty, em todos eles haverá uma “matadeira” que perfura nossos corpos.

Os sertanejos viram os canhões de guerra (Krupp e Withworth 32), os rifles, as carabinas, e as metralhadoras dizimarem suas vidas, os moradores das favelas veem as pistolas, as submetralhadoras e os fuzis atravessarem seus corpos, como se fossem tiro ao alvo – sim, matar gente pobre preta, quer seja na favela, quer seja no asfalto, se tornou um esporte – apenas porque existem.

A divisão do tempo é só uma invenção humana. O ontem e o hoje são outras palavras para substituir o termo “duração”, ou “continuidade”, se preferir. O Exército que eliminou cerca de 30 mil pessoas em Canudos, é o mesmo que direta e/ou indiretamente (através da Polícia Militar) mata pessoas nos asfaltos e nas favelas.

A canção de artilharia do Exército é uma verdadeira ode ao terror. Tomando a realidade de violência como referência, não temos como saber se a canção se refere aos inimigos estrangeiros, ou aos inimigos domésticos, tamanha similaridade violenta com a qual as forças policiais tratam seus concidadãos, como se fossem – e para eles são – verdadeiros inimigos a serem combatidos até a morte.

A bizarra ironia disso tudo é que os soldados que dizimaram os sertanejos de Canudos, foram os mesmos que, após servirem ao Estado e serem dispensados pelo Exército sem receber seus soldos, subiram o morro que lhe serviu de moradia providencial.  Daí surgiu o Morro da Providência, a primeira favela do Rio de Janeiro. Nessa comunidade moravam ex-soldados e ex-escravizados. Todos unidos pela miséria, discriminação e humilhação.

Quer dizer, os soldados, em sua imensa maioria, são pessoas pretas que matam outras pessoas pretas em nome de um Estado que lhe mata também. A falta de sentido em tudo isso é gritante. É como se vivêssemos nos enredos de Rick e Morty. Nesse desenho, o personagem Rick explicita que a maioria dos comportamentos socais não fazem o menor sentido.

Assim como não faz sentido alguém roubar ou assaltar para comprar – quando o mais lógico, sem apologia alguma, seria subtrair logo o objeto –, é um despropósito viver em uma sociedade cuja meta é matar as pessoas pobres pretas e indígenas que são a razão de ser do Estado, porque pagam seus impostos. Digo, é como se nós pagássemos para o Estado, através de sua força policial, nos matar. Isso não faz o menor sentido!

Kathlen Romeu, nossa irmã de cor, e o filho em gestação em seu ventre foram mais duas vítimas do extermínio policial que sensibilizou a nação. Quer dizer, sensibilizou a parte pobre e preta da nação. Boa parte da imprensa midiática ignorou as mortes dessas duas vítimas por uma bala de fuzil, a “matadeira”, que atravessou o tórax da jovem Kathlen.

A realidade é tão absurda, já dizia Rick, que a empresa Farm, através de sua especialista em diversidade Caroline Sodré, uma mulher preta, teve a brilhante ideia de reverter a COMISSÃO das vendas em apoio à família da Kathlen. Eu não tenho a menor dúvida de que a vontade da Sodré era de que a empresa fizesse uma doação diretamente para a família, afinal, a funcionária lhe rendia lucros modelando para a empresa do setor de roupas.

Todavia, haja vista a impiedade e insensibilidade do espírito capitalista, a Farm só viu lucro, falsamente mal travestido de apoio. Com atraso, retiraram a “promoção do ar”, a qual nem deveria existir, a propósito. Nossa, deixa eu parar nesse ponto: a empresa se dispôs a doar a COMISSÃO das vendas para a família; isto é, até após sua morte, a Kathlen estava trabalhando para a empresa. O capitalismo é um fenômeno, o capitalista é um câncer!

Porém, como se não fosse suficiente esse absurdo capitalista, que explora a desgraça trágica de uma funcionária, na imprensa corrente, que se prontificou a noticiar a morte da irmã, usaram fotos que ela modelou. Algumas, aliás, de forma sensual. Agora, me diga você, qual é o sentido de um veículo de imprensa pôr uma foto de modelagem de uma mulher preta que morreu com um tiro na cabeça? O bom siso passou longe, muito longe.

Além de “escolherem” a Kahlen para noticiar, os poucos veículos que assim fizeram, só agiram assim porque ela era uma mulher bonita, aos olhos ocidentais, e tinha fotos relativamente sensuais, de acordo com seus padrões.

Eu sei que você pode pensar: “mas, ora, você não fica satisfeito com nada: se a mídia comenta, reclama, se fica em silencia, também reclama”. É isso, sempre reclamaremos. Nunca nos daremos por satisfeitos, enquanto não terminar a espetacularização de nossos corpos.

O mínimo aceitável é que a imprensa midiática faça uma cobertura massiva de todas as mortes negras em nosso país, em caráter de denúncia do Estado Democrático de Direito brasileiro que, através de seu Exército e de sua extensão que é a Polícia Militar, EXECUTA PESSOAS PRETAS. O mínimo aceitável é que, ao se noticiar a morte de uma mulher preta com 14 semanas de gestação, se tenha a dignidade e o cuidado de não sensualizá-la e/ou sexualizá-la – porque o bom senso manda lembranças.

Eu estou falando sobre a extinção de absurdidades. Entretanto, o cotidiano nos frustra. Mal se noticiou a morte da irmã, já se tem informações de outros casos que a Polícia, sob o malsucedido pretexto de “troca de tiros”, baleou outras pessoas – de que cor? – pretas, claro.

Uma criança em gestação, uma criança em gestação teve seu nascimento interrompido porque a Polícia, nesse caso, Militar, foi a uma comunidade caçar pretos. Ela matou uma irmã com um tiro na cabeça e, por conseguinte, seu futuro rebento.

Nosso país é uma arma matadeira – agora, sem aspas – de corpos pobres e pretos. As vidas negras e indígenas são irrelevantes para o Estado Brasileiro.

Eu não gosto de falar do Estado de forma abstrata. Digo, muitos de nós, que pagamos aos integrantes da Administração Pública – que é, na prática, o Estado brasileiro –, somos, infelizmente, insensíveis aos nossos irmãos. Ora é um policial preto, que no auge de sua estupidez serve cegamente às ordens de seus superiores de nos maltratar e nos matar, ora é um cidadão comum que não consegue enxergar que hoje se maltrata e se mata um preto “qualquer”, que ele é indiferente, amanhã será ele a própria vítima.

“Nosso” “país” é um completo absurdo. O corpo de Moisés ficou 4h coberto por guarda-sóis no supermercado Carrefour, na unidade de Recife, para que a loja continuasse tendo o lucro diário. Aliás, foi na mesma loja, agora na unidade de Porto Alegre, que João Alberto foi brutalmente assassinado por seguranças, após reagirem a um soco deflagrado pela vítima. A reação dos seguranças foi absurdamente desproporcional, ao ponto de eles deixarem de se tornar vítimas e passarem a ser criminosos.

Ao mapear a violência, vemos que os corpos negros são os que mais morrem. A cada 23 segundos, um homem negro morre. Dos mais ou menos 30 mil jovens assassinados, cerca de 77% são de pretos, entre 15 e 29 anos. Dos mais de 700 mil presos, mais de 63% são pessoas negras, ou seja, mais de 441 mil são de pessoas pretas, que, em sua maioria, nem julgados foram.

O Brazil, termino dizendo, é um universo paralelo próprio. E, tenho certeza, se Rick e Morty viessem para cá, com toda certeza ficariam horrorizados e traumatizados, apesar da vasta experiência com absurdidades. É meu sincero afã que a matadeira não atravesse os portais temporais desses seres animados. Eles não merecem passar pelo que passamos. Ninguém merece, aliás.

Meu deus, onde está nossa arma de abrir portais? Esse “pais” não faz o menor sentido.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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