Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 4 de abril de 2022

Relato: eu, a leitura e a escrita

postado por Joao Paulo Rodrigues

No primeiro dia de aula do curso de Filosofia, na Universidade do Rio Grande do Norte, um professor disse-nos, de maneira esotérica – e quase mística – que não somos nós quem escolhemos a Filosofia, é esta quem nos escolhe. Distante do exoterismo vulgar da Lei da Atração, eu gosto de pensar que foi a leitura quem me escolheu e a escrita quem me acolheu.

Até meus 14 anos eu não lia um livro sequer. Não tenho lembranças de que li uma frase – claro que estou a exagerar e assim o faço para enfatizar que não me lembro de texto algum antes dessa idade.

Minha ignorância potente foi compensada pela graça latente de poder perceber a diferença entre quem vive pela imagem e quem opera pelo discurso. Eu vivia em um mundo em que eu era a paisagem, sendo o contrário uma verdade – como se a prática solipisista estivesse perdurado para além da fase de recém-nascido.

Apesar de haver beleza na vida sob o manto da imagem, tudo se transformou quando passei a ler e a escrever, pois passei a enxergar através do discurso que a leitura transmite.

Os dois primeiros livros que li, concomitantemente, foram a Bíblia e o dicionário Aurélio. Lembro-me de que, ao ler os Evangelhos, deparei-me com a clássica frase de Jesus acerca da liberdade: “conhecereis a verdade e ela vos libertará” – ou qualquer coisa desse tipo!

Não era a busca pela verdade que me instigava, mas sim a busca pela liberdade. Por esse período, eu era evangélico e tinha guardado em meu coração o credo de que se minha fé fosse do tamanho de um grão de mostarda, eu poderia mover montanha e ser galardoado pelo Senhor.

Eu pensava que minha crença era inabalável e, por isso, não via motivos para não experimentar toda leitura, ainda que não me conviesse!

Bem, minha fé, ao que parece, era menor que um grão de mostarda, porquanto, após dois anos de assíduas leituras, abandonei-a! Porém, se por um lado perdi a experiência com o divino, por outro, experimentei outras sensibilidades só encontrada entre os mortais.

Meu signo é de Peixes, então, o exagero está em minha digital. Depois de ler a Bíblia e do dicionário, passei a ler absolutamente tudo que caía em minhas mãos. Entre livros sagrados e revista Playboy, textos do sociólogo Gilberto Freyre e mapas astrais, um livro e três autores me deixaram marcas indeléveis.

Graciliano Ramos, Jorge Amado e Marcos Valério foram-me muito improtantes. Este último, aliás, através do livro A Montanha e o Grão de Areia, fez com que eu sentisse as dores do mundo quando não conhecia nem o hinduísmo nem mesmo Schopenhauer.

Ainda que eu não tivesse sido incentivado a ler no meu seio familiar, seria injusto dizer que eu não tive alguma referência. Meu pai, que pouco conviveu comigo, sempre trazia do trabalho alguns que encontravam jogado em algum lixo, dentro do prédio onde era vigilante.

Todavia, insisto, não foi nem mesmo a relação com os amigos que me levou à leitura. Na verdade, ratifico o assentido acima: eu não escolhi a leitura, foi ela quem me acolheu!

Se por boa sorte eu não sei, se por má sorte eu também não sei, o fato é que fui forjado no crisol da literatura. Com esta, eu aprendi que muitas vidas eram secas e compreendi que muitas vezes apenas balbuciamos como quem queira falar, mas não o consegue. Foi com a literatura que eu aprendi que aos meninos abandonados não resta outra opção senão serem capitães de areia.

Através da leitura pude voltar ao meu mundo imagético, todavia, digamos, com mais sofisticação. Passei a escrever com mais vontade e perícia. De quando em vez ensaiava algum escrito, buscando sintetizar o mundo que se apresentava para mim. Por meio da caneta desenhava minhas impressões!

Não se força ninguém a ler, o máximo que podemos fazer é inspirar o hábio da leitura. Foi o que eu fiz. Entre meus 15 e 18 anos, não saía da biblioteca da escola. Com certeza eu li pelo menos 40% dos livros que já estavam – a biblioteca era pequenininha, importa dizer. Minha assiduidade era tanta, que o diretor delegava a mim os cuidados dos livros, apesar de haver bibliotecária.

Meus colegas, de tanto me verem naquele lugar sagrado para mim, perguntavam-me o motivo de eu ler tanto, quando poderia estar fazendo qualquer outra coisa. Sem demora, na medida em que os respondia ou proseava, logo lhes indicava um livro para ler. Eu nutria a esperança de eles fossem escolhidos também, assim como eu, por Brecht, Homero, Anne Frank, Drummond e tantos outros que fizeram de mim quem eu sou, de modo que foi possível a realização de um relato de mim.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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