Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 8 de abril de 2022

Eu não sou Dom Casmurro

postado por Joao Paulo Rodrigues

Eu vi, eu estava lá. Não foi ninguém que me contou, não foi o bicho do ciúme que me acometeu. Não enlouqueci. Eu vi, eu juro que vi. Podem dizer que eu estava embriagado, podem até dizer que eu estava drogado, mas eu vivi.

Tudo está fresco na minha memória. O dia se passou para mim como se passou para James Joyce. Lembro-me de tudo detalhadamente, todavia, para não cansar ao leitor, narrarei apenas uns flashs do dia, a fim de compartilhar o clímax de minhas sensações ao ver minha esposa namorando meu único filho, seu enteado.

Era uma manhã de sábado. O dia estava lindo. Como de costume, acordei às cinco horas. Tomei um banho gelado para despertar o juízo e tomei um café puro. Dei um beijo em Maria, que ainda dormia, e fui comprar pão por volta das seis horas.

Trouxe pão, leite e margarina do mercado. Nesse ínterim, Maria e José, meu filho – que tinha 18 anos à época –, já estavam acordados. Tomamos café da manhã. Eu fui trabalhar e Maria também – ao menos eu pensei que sim! José, como de costume, ficou em casa – assim pensei eu –, porque só estudava no período vespertino.

Eu nunca almoçava em casa, porque não dava tempo de ir e vir no intervalo do trabalho. Entretanto, por sorte ou azar, eu fui liberado mais cedo, porque tinha horas extras acumuladas.

Por questão de economia e vontade de fazer uma boa surpresa a Maria, resolvi almoçar em casa. Não caminho de volta, eu decidi comprar flores para ela – era algo que eu quase nunca fazia, porém, julguei que seria um afago digno de se fazer. Eu estava de bom humor, afinal, não é todo dia que trabalhava só metade do expediente.

Para meu infeliz destino, fui eu quem tive uma surpresa ao chegar em casa.

Ao entrar em minha residência, encontrei-a vazia. Estranhei, mas nem tanto. Averiguei que ninguém se encontrava na sala nem na cozinha. Ao entrar no quarto, na fé de que iria tomar um banho e esperar o pessoal, deparei-me com uma cena que me mutilou o juízo e, na sequência, a carne.

Jamais esquecerei o que vi. Lá estavam Maria e meu filho entrelaçados, feito dois animais. Minha cama se tornou ninho de amor e traição. Meu único filho estava transando com meu único amor.

— Que porra é isso? — atônico, gritei.

Ao me ver, eles ficaram desnorteados, porém, não mais do que eu. Nada disseram, nada tentaram dizer, apenas se cobriram, assim como Adão e Eva, e se desenlaçaram.

Saí ensandecido pela rua. Não estava querendo aceitar o que eu vira. Penas perguntava, para todo mundo ouvir, o porquê de eles terem feito aquilo comigo.

Foi a maior dor que senti na vida – não se tratou apenas de sofrimento; foi dor mesmo!

Aquela cena me cegou as vistas e.

Não tive vontade de matar o casal. Na verdade, eu tive vontade de me matar, tamanha vergonha que senti.

As duas pessoas que eu mais amava na vida me traíra e na minha cama! Como pode um filho meu se deitar com sua madrasta? Como meu filho pôde fazer aquilo comigo? Como Maria tivera coragem? Eu fazia essas perguntas sem parar.

A partir daquele momento, eu não me sentia mais um homem. Eu era qualquer coisa, menos um homem. Não tinha mais motivo para eu carregar minha moral e nem mesmo minha genitália.

Não foi à toa que eu cortei meu pênis. Sim, eu enlouqueci!

Maria foi à mídia jornalística dizer que eu estava bêbado, que tinha ficado transtornado. Todos riram de mim!

Eu gostaria que tudo tivesse sido um pesadelo, mas era real, assim como foi real minha vontade de… não gosto nem de lembrar.

A história de Bentinho se trata do sentimento de ciúme, a minha se trata da experiência da traição.

Eu não merecia o que fizeram comigo. Talvez alguém pense ou pensou, à época, que eu tivera feito coisas terríveis contra Maria e José. Porém, quem me conhece sabe, eu sempre procurei ser o mais honesto possível. Se não acredita em mim, pergunte aos meus vizinhos, eles dão testemunho de minha pessoa.

Talvez eu tenha sido um homem ruim esse tempo todo e não tenha me dado contato, talvez eu tenha merecido essa traição!

Desde o ocorrido para cá, eu me pergunto sobre qual blasfêmia cometi contra Deus. Estaria eu sendo testado, tal qual Jó? Creio que não. Eu nunca fui um santo tal qual Enoque, mas também nunca fui um Davi, que desejou a esposa do próximo.

Eu deixei de ser um cidadão normal – aquele que nos conta Belchior – para me tornar um ser qualquer entre os demais seres. A minha vida perdeu o sentido. A realidade frustrou minhas fantasias.

Nem sei ao certo porque estou vivo ainda. Queria eu que a hemorragia não fosse estancada, mas foi.

Hoje eu vivo com o estigma de um homem que foi traído pela esposa, que se deitou com seu enteado. Hoje eu faço parte do catálogo de Nelson Rodrigues.

Mas não, eu não sou um Dom Casmurro, eu juro.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

Comments are closed.

Artes

Relato: eu, a leitura e a escrita

Artes

Carta de um leitor