Rio Grande do Norte, segunda-feira, 29 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 7 de fevereiro de 2011

Barbarismos e o silêncio das Humanidades

postado por Alyson Freire

A cultura científica também produz banalidades e barbarismos. Definitivamente, as pesquisas sobre quoeficiente de inteligência constituem um forte exemplo da afirmação acima. As pesquisas sobre Q.I, e suas correlações com as mais estranhas variáveis e comportamentos, possuem uma longa tradição na Ciência, sobretudo nos EUA. Esse tipo de pesquisa constitui um dos principais meios de propaganda e conquista de prestígio rápido junto à “opinião pública”. A fórmula para fama é simples e pouco desgastante; aplicação de questionários, cruzamento de dados com variáveis inusitadas – como infidelidade, crença, preferência por clube X ou Y etc. – de sorte a confirmar a opinião e reiterar a auto-interpretação que o próprio senso-comum faz acerca de si mesmo. A linguagem estatística e a força dos números conferem o ar de verdade científica e objetividade, assim como a confiança e a justificação acerca das conclusões alcançadas.

Sob similar estratégia do “conhecimento imediato”, o psicólogo evolucionista da London School of Economics and Political Science, Satoshi Kanazawa, obteve os seus quinze minutos de fama. Ele publicou, no ano passado, na revista da Associação Americana de Sociologia, a Social Psychology Quaterly, um extenso artigo intitulado; “Porque os liberais e ateus são mais inteligentes”.

Em síntese, o argumento central é o seguinte: se considerarmos a inteligência como um produto evolutivo resultante da exposição às novas situações e demandas relativas à espécie – sua sobrevivência e desenvolvimento -, a inteligência mais capaz é aquela que consegue adaptar-se a essas novas situações e dar continuidade ao processo de evolução da espécie. Sob esse ponto de vista, o autor sustenta que o liberalismo e o ateísmo são respostas adaptativas a situações novas, que, do “ponto de vista evolucionário”, surgiram para espécie.

Também pelo fato de ateus e liberais, geralmente, não recorrerem à explicação em termos de natural ou sobrenatural, como fazem, em vias de regra, os religiosos e conservadores, a inteligência dos primeiros, segundo Satoshi, é impelida, em sua empresa para adaptar-se às novas condições evolutivas, a um salto, a uma evolução em direção a inclinações e práticas novas.

No grupo dos mais inteligentes, o psicólogo acrescenta os homens monogâmicos. A fidelidade seria um sinal de evolução da espécie. O homem fiel seria diferente do padrão “relativamente polígamo” que o gênero teve ao longo da História. Não trair seria, segundo o estudo, uma novidade evolucionária abraçada pelos mais inteligentes.

O espantoso não é nem tanto o reducionismo e as generalizações precipitadas desses barbarismos intelectuais provincianos, cujo objetivo é mais a busca por lucros editoriais e midiáticos do que o aprimoramento e a sofisticação dos horizontes da pesquisa científica e de seus desdobramentos. O espantoso é, antes, o silêncio e a pouca atenção dada por filósofos e sociólogos, enfim, pelas Humanidades, contra esse tipo de afirmações. Pesquisas desse tipo, e sua fácil penetração nos meios de comunicação, revelam uma indiferença explícita, quer por ignorância ou desprezo, aos trabalhos e à história intelectual das Humanidades.

Não se trata apenas questionar a validade científica ou de criticar as pressuposições epistemológicas e as simplificações desses trabalhos. O principal, a meu ver, é a urgência ética e política de contrapor pesquisas desse calibre com uma obra sistemática.

Ética porque toda atividade intelectual é uma prática social com efeitos políticos, sociais e culturais específicos. Efeitos interligados tanto aos enunciados teóricos, quanto a práxis propriamente dita. Portanto, exigente de responsabilidade e reflexividade, a avaliação dos enunciados produzidos, e suas implicações – possíveis e efetivas – na sociedade, em geral, e na pesquisa científica, em particular, deve ser um predicado de todo empreendimento intelectual.

Uma questão política porque se trata também de denunciar e combater os efeitos de poder relativos a pesquisas do tipo mencionado: no caso, o mascaramento de posições normativas, de preconceitos e de crenças morais, que sob verniz da “pesquisa científica”, da neutralidade e objetividade dos resultados obtidos, servem para fortalecer a hegemonia de determinados segmentos e visões de mundo em detrimento de outros. Afinal de contas, quem são normalmente, no imaginário social, os ateus, liberais e monogâmicos senão homens brancos heterossexuais e habitantes dos países ricos? Quer dizer que, ao fim e ao cabo, toda a espécie de gente que não se enquadra no espectro político do liberalismo é menos inteligente pelos simples fato de pensar diferente dos marcos desse último?

Além do mais, pergunto as leitoras e leitores da Carta, quantos porteiros, encanadores e empregadas domésticas os senhores e senhoras conhecem que se intitulam como ateus e adeptos do liberalismo político? Percebam, como na pesquisa mencionada, as pré-noções sobre as posições das classes estão perfeitamente demarcada smediante a divisão e hierarquia entre trabalho intelectual/trabalho manual – os que usam a cabeça e os que são “mero corpo”. A questão do Q.I é um elemento a mais no incremento da dominação simbólica e no não-reconhecimento social de certas profissões e classe de pessoas.

O silêncio das Humanidades é preocupante. Por isso, urge indagar: por quanto tempo, sociólogos, antropólogos, filósofos e historiadores assistirão passivos esses disparates que jogam à lata do lixo seus ofícios, sua história intelectual e trabalhos, contentando-se em responder tão somente por meio de conversas de corredor – exclamadas de indignação -, por ironias em palestras e em aulas ou através de notas de rodapé publicadas em revistas e blogues? Será que já não é o momento de uma obra de fôlego, de um empreendimento consistente, rigoroso, em franco antagonismo com pesquisas desse tipo, reducionistas e biologizantes, e que, sobretudo, reúna transdisciplinarmente as Humanidades no sentido de levar suas contribuições, história e perspectiva crítica para públicos diversos?

 

Leia nos links abaixo, respectivamente, a reportagem sobre a pesquisa de Satoshi e o artigo do psicólogo evolutivo:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u700498.shtml

http://personal.lse.ac.uk/Kanazawa/pdfs/SPQ2010.pdf

Para um esboço de um projeto crítico a próposito do lugar e do papel das Humanidades ver no link abaixo o artigo do prof. do Departamento de Ciências Sociais Alípio de Sousa.

http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v01n01art02_sfilho.pdf

 

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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