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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 18 de agosto de 2019

Movimentos anticosmopolitas: desafio para a Segurança Pública no Século XXI

postado por Carta Potiguar

Por Adson Kepler Monteiro Maia – Delegado de Polícia Civil, especialista em Direito Internacional e em Ética pela UFRN.

Diante da indagação, sempre atual, se as instituições policiais e seus agentes podem ter posições ideológicas, responde-se, de acordo com a doutrina do Direito Constitucional e as normas internacionais de direitos humanos, de forma muito simples: as instituições policiais e seus agentes devem ter, no exercício de suas funções, a ideologia consagrada nas normas constitucionais de cada país e contidas em seus princípios. Esta, por sua vez, deve respeitar a independência e soberania de cada país, mas também ser compatíveis com o Direito Cosmopolita ora vigente.

Em outras palavras, a ideologia institucional do país e seus agentes é a constitucionalista. Ela engloba a legalidade, o republicanismo e vários outros princípios contidos na Constituição. Se a Constituição da República preceitua que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, que respeita a laicidade e o pluralismo político e religioso, não resta dúvida que a democracia constitucional é o arcabouço ideológico que deve ser observado sempre pelos policiais no exercício profissional. Obviamente, cada policial, na condição de cidadão comum e fora de suas atribuições funcionais, pode ter suas ideias e convicções políticas ou religiosas pessoais, ainda que sejam ideias como as que Ronald Dworkin descreveu como divergentes e excêntricas (no contexto da democracia liberal e da Constituição dos Estados Unidos)[1]. Ainda assim, os códigos de ética profissional e as normas disciplinares indicam que o profissional deve medir seus atos conforme a discricionariedade permitida e as vinculações obrigatórias, isto dentro de um sistema jurídico hierarquizado, cuja norma maior é sempre a Constituição que, por sua vez, autoriza expressamente a incorporação de normas internacionais de direitos humanos como parte de si.

Nas suas relações internacionais, o Brasil tem como princípio a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, assim como é um objetivo expresso na Constituição a busca pela integração de países latino-americanos em uma comunidade política, social, econômica e cultural (art. 4º, II e IX, parágrafo único da CRFB). O dispositivo tem bastante efeito prático, tanto que as evoluções no direito penal interno sobre crimes de lavagem de dinheiro e o papel desempenhado pela COAF nas investigações são frutos de tratados internacionais ratificados e incorporados pelo Brasil – cita-se como exemplo a Convenção de Palermo[2]. Também é possível citar a tentativa de integração na UNASUL, hoje esvaziada, o MERCOSUL e, mais recentemente, o PROSUL, que embora tenha conotação política diferente de tentativas anteriores, é, na sua essência, expressão de um direito cosmopolita que transcende a política interna de cada país.

O mesmo ocorre, ainda que com resistência de parcelas da sociedade, na proteção contra violações dos direitos humanos. A obrigatoriedade da apresentação de pessoas detidas a uma autoridade judicial ou que tenha poderes judiciais é também, assim como os exemplos acima, fruto de tratados internacionais incorporados pelo Brasil e a consequente discussão sobre o cumprimento dessas normas. No caso específico, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

Em vários lugares do mundo ocidental, os valores universalizados pela maioria das constituições, principalmente os direitos fundamentais de segunda e terceira dimensão (relacionados a valores de igualdade e solidariedade, respectivamente), como a proteção social, a proteção dos refugiados e do meio ambiente, têm sido questionados muito além do exercício da liberdade de expressão, ou ainda, muito além da liberdade de se questionar. Surgem ações que podem ser tipificadas como ilícitos penais, como o assassinato de um cantor de “rap” ativista de esquerda na Grécia por membros do partido neonazista Aurora Dourada – inclusive com a participação de deputados daquele partido, atualmente presos. No Brasil temos os recentes assassinatos de indígenas e outros ativistas por razões políticas na região Norte do país. Todos são casos que exemplificam a possibilidade de ideias de ódio se tornarem ações de violência real criminosas em total afronta à Lei e divergindo do espírito constitucional vigente no país.

Os efeitos positivos e negativos da modernidade e da globalização destacam-se de maneira simultânea com a crise da democracia liberal e da representatividade política. A promessa de ascensão de um cosmopolitismo mundial a partir do exemplo da Comunidade Europeia passou a ser alvo de acusações de movimentos radicais de extrema-direita, que se diferenciam do nazifascismo por adotarem um discurso de defesa de liberdades negativas e se colocarem como precursores de uma ideologia que julgam ora pós-moderna, ora antimodernidade, sempre procurando se diferenciar do extremismo dogmático clássico do século XX. Quanto mais forte a crise econômica, política e social de um país, mais fortes e agressivos são os movimentos anticosmopolitas.

O termo anticosmopolita vem do sociólogo Ulrich Beck, que faleceu no primeiro dia de 2015, encontrado na sua obra inconclusa intitulada no Brasil de “A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade”.[3] Foi seu último ensaio sobre a globalização e sobre a sua teoria da sociedade de riscos.

Trata-se de um livro onde se percebe um esforço de atualização de boa parte do que o autor escreveu antes (anos 80 e 90) sobre a sociedade de riscos e a globalização. Se antes se percebia seu alinhamento com as perspectivas cosmopolitas hegemônicas na Comunidade Europeia, desta vez se verifica uma maior preocupação com a democracia e os movimentos sociais, principalmente os movimentos ambientalistas e os movimentos contra-hegemônicos. Para o autor, os movimentos sociais são vistos como fatores de democratização dentro de um processo de globalização irreversível, os quais trazem benefícios e malefícios ao mesmo tempo, causando insegurança na sociedade.[4] Tudo isso tem implicações na segurança pública, principalmente no que diz respeito a concretização dos tratados internacionais de direitos humanos e a expansão inevitável do direito penal como meio de redução dos riscos advindos do terrorismo e do crime transnacional, como o tráfico de seres humanos, a corrupção e a lavagem de dinheiro.

No âmbito da criminalidade comum, o uso de novas tecnologias de informação por criminosos representa também um desafio para as polícias de países que historicamente pouco investiram em tecnologias para lidar com a segurança pública. Daí que se levanta o desafio de se fazer uma segurança pública eficiente frente a uma nova realidade, sem limitar as ações de prevenção e repressão a uma “criminalidade de varejo”, e, ao mesmo tempo, manter sempre o necessário respeito inflexível a Constituição e distância das disputas de poder político.

A globalização tem, segundo Beck reconhece e descreve, aspectos negativos, todavia, acredita que vários tipos de movimentos cosmopolitistas trabalham, dentro de processos hegemônicos e contra-hegemônicos, para que o resultado seja o bem comum da humanidade. Muitos dos aspectos negativos da globalização estão no aumento dos riscos para o meio ambiente, a transnacionalidade do crime organizado e do terrorismo. Na mesma esteira, tem-se as ameaças à democracia no discurso de partidos e movimentos de extrema-direita, que adquiriram peso político em muitos lugares do mundo, valendo-se do medo das pessoas diante dessas novas ameaças: seja a ameaça do desemprego nos EUA pela concorrência com produtos chineses, a crise dos refugiados na Europa ou o crescimento da criminalidade comum onde antes havia paz[5].

Enquanto movimentos sociais e políticos, independentes ou unidos a grupos econômicos em busca de melhor adaptação e inserção social, trabalham para a construção de uma sociedade cosmopolita que enfatiza as soluções locais para seus problemas (muitos deles problemas mundiais), dentro de um processo de descolonização gerado pela integração cosmopolita e pela adoção de um universalismo plural (não por políticas neonacionalistas e/ou populistas), surge ao mesmo tempo uma sociedade cosmopolita liderada pelas grandes cidades mundiais. Independente da proposta ser reformista como a de Beck ou de ruptura pacifista como a de Murray Bookchin[6], o fato é que ficou impossível no mundo atual o pensamento único e a imposição de doutrinas metafísicas, estatais ou de partidos, como ocorria facilmente da Antiguidade até o Século XX.

A evidência que isso tudo é algo irreversível (ou ameaçador pela sua complexidade) traz fortes resistências nos segmentos da sociedade mais adversos ou preocupados com as incertezas das mudanças. Assim, movimentos que se autodenominam como nacionalistas utilizam os efeitos colaterais negativos da globalização, como as migrações de empregos, as crises de refugiados, a transnacionalidade da corrupção, do crime organizado e do terrorismo como pretextos para uma reação agressiva ou violenta ao que hipoteticamente lhes ameaça na globalização. Porém, ao mesmo tempo, usam a globalização e suas qualidades benéficas para difundir suas ideias radicais, e não pretendem deixar de usufruir dos aspectos positivos da globalização: as tecnologias de informação, o comércio internacional, a exportação de seus produtos para os mercados, cada vez mais engajados em questões como o meio ambiente, direitos humanos e democracia.

Este é o contexto dos desafios que a segurança pública enfrenta hoje em vários lugares do mundo, com maior complexidade nos países mais carentes em recursos e tecnologias, porém igualmente afetados por algumas das consequências da globalização.

Para enfrentar esse grande desafio, não há solução imediata que não envolva integração de vários atores sociais e institucionais, investimentos públicos e privados, principalmente no acesso às novas tecnologias. O papel estatal é imprescindível, embora possa diminuir com políticas públicas de longo prazo voltadas para a Educação e a autogestão da segurança por meios tecnológicos, como o vídeo-monitoramento comunitário e a justiça restaurativa. Todavia, no que diz respeito a polícia judiciária, jamais será descartado o papel essencial da perícia científica criminal e os recursos tecnológicos de inteligência, independente do papel que o Estado venha ter no futuro.

No caso do Brasil, onde o Poder Público em todo país enfrenta recessão e elevada dívida pública, os investimentos podem demorar, mas é preciso compreender sua prioridade junto com as políticas de Educação e de Saúde. Enquanto os investimentos não chegam na dimensão desejada, muita coisa pode ser feita sem recursos, como o aperfeiçoamento das políticas de integração entre as corporações policiais, a segurança voltada para os “pontos quentes”, indicados por análises estatísticas quantitativas e qualitativas, dentre vários outros recursos já testados e aprovados em vários lugares do mundo[7]. Porém, o mais importante, no momento, é não ceder às simplificações danosas na política e nas redes sociais. Não dá para tratar de problemas sistêmicos com medidas lineares e artificialmente simplificadas, como exemplo, a maior liberdade para as classes mais abastadas comprarem armas de fogo. Muito menos envolver problemas tão graves no lugar comum da polarização política confusa que se meteu o país. Ainda há esperança no horizonte.

Natal, 29 de julho de 2019.

 

REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

BOOKCHIN, Murray. Municipalismo Libertário. Trad. J.P. Oliveira, Mário Rui Pinto et al. São Paulo: Nu-Sol/Imaginário/ SOMA, 1999.

BRASIL. Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm. Acesso em: 29 jul. 2019.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Trad. Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

SHERMAN, Lawrence et al. Hot spots of crime and criminal careers of places. Wiley Online Library, 1989. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/580e/0a9a216444faf0db9592df45076fac297d50.pdf. Acesso em: 29 jul. 2019.

[1] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Trad. Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. IX (Introdução).

[2] BRASIL. Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm. Acesso em: 29 jul. 2019.

[3] BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

[4] Os movimentos sociais são incluídos por Beck num conceito de movimentos de ações “subpolíticas” por estarem dentro da política influenciando-a, todavia sem fazer parte formalmente da política institucional. Em toda a sua obra, desde os anos 80, os movimentos sociais e o ativismo têm importância crescente.

[5] Também existe um discurso autoritário e/ou anticosmopolita em alguns segmentos da esquerda radical que, por vezes, também assume uma posição populista, porém, tais segmentos não têm obtido crescimento, seja em resultados eleitorais ou seja na esfera pública como todo.

[6] BOOKCHIN, Murray. Municipalismo Libertário. Trad. J.P. Oliveira, Mário Rui Pinto et al. São Paulo: Nu-Sol/Imaginário/ SOMA, 1999.

[7] SHERMAN, Lawrence et al. Hot spots of crime and criminal careers of places. Wiley Online Library, 1989. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/580e/0a9a216444faf0db9592df45076fac297d50.pdf. Acesso em: 29 jul. 2019.

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